"O art. 50 do Código Civil estabelece que em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir que os efeitos de certas obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios das pessoas jurídicas. É a consagração ampla da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica – disregard of the legal entity –, que já tinha sido introduzida na Consolidação das Leis do Trabalho e no Código de Defesa do Consumidor. A norma é também aplicável às relações de família, principalmente nas hipóteses da partilha dos bens comuns do casal ou das obrigações alimentares, sempre que se constatar que o cônjuge empresário – ou companheiro, na dissolução da união estável – de pessoa jurídica que integre como sócio, pôs, sob a titularidade desta, bens que deveriam ingressar na comunhão, ou que deveriam estar sob sua própria titularidade, de modo que esses bens pudessem responder por suas dívidas pessoais. Nessas hipóteses “levanta-se o véu” da pessoa jurídica para se alcançar a pessoa que de fato abusou da autonomia patrimonial, que a caracteriza. A finalidade ilícita é encoberta pela aparência da personalidade jurídica. O patrimônio que aparentemente é da pessoa jurídica continua sob controle do cônjuge ou companheiro, seu efetivo dono.
Difunde-se nos tribunais a aplicação da desconsideração desconsideração da personalidade jurídica no campo do direito de família, “principalmente perante a diuturna constatação, nas disputas matrimoniais, de o cônjuge empresário esconder-se sob as vestes da sociedade, para a qual faz despejar, se não todo, ao menos o rol mais significativo dos bens comuns”. Noutras ocasiões, antes da dissolução da união estável ou do divórcio, o cônjuge ou companheiro empresário simula retirada da pessoa jurídica transferindo sua participação a terceiro presta-nome, que lhe devolverá depois de consumada a partilha dos bens conjugais ou a fixação dos alimentos (Madaleno, 2000b, p. 5234).
Tendo em vista que se alcança o patrimônio formal da pessoa jurídica e não propriamente de quem a controla ou dela se utiliza (que é o modelo padrão da disregard), tem-se denominado o instituto desconsideração “inversa” da personalidade jurídica. O STJ tem admitido a desconsideração inversa, como se vê no REsp 1.236.916, em caso de confusão patrimonial e abuso de direito por parte do sócio majoritário de pessoa jurídica, em virtude de existência de manobras arquitetadas para fraudar a futura partilha em dissolução de união estável, e no REsp 1.522.142, em caso de divórcio com partilha de bens, relativamente à transferência de participação societária do cônjuge à sua sócia e cunhada, dias antes da separação de fato. O § 2º do art. 133 do CPC acolhe explicitamente a desconsideração inversa da personalidade jurídica, determinando que a ela também se aplique o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, cabível em qualquer fase do processo; se for acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou oneração de bens será ineficaz em relação ao requerente. Com efeito, não se trata de invalidade, mas sim de ineficácia dos atos de alienação ou oneração dos bens à pessoa jurídica, da qual o outro cônjuge ou companheiro seja sócio.
Judicialmente, efetiva-se a desconsideração da personalidade jurídica pelos meios processuais que melhor alcancem as finalidades de tutela jurídica dos prejudicados. No caso de partilha, em virtude de divórcio ou dissolução da união estável, o juiz poderá determinar que o valor dos bens sob abusiva titularidade da pessoa jurídica seja compensado com os outros bens comuns, incluindo o condomínio das quotas sociais do cônjuge ou companheiro, ou que seja objeto de indenização ao prejudicado – quando houver transferência simulada da participação societária para terceiro, ou “pelos prejuízos sofridos com a ruinosa atividade do marido, quanto aos reflexos patrimoniais de sua meação” (TJSP, RT 696/117) –, ou até mesmo desafetados os bens do patrimônio da pessoa jurídica, declarando inválidos os atos de transferência ou aquisição, para que sejam incluídos no acervo dos bens comuns partilháveis. No caso de alimentos, o patrimônio sob aparente titularidade da pessoa jurídica deve ser considerado para efeito da dimensão das possibilidades do devedor alimentante.
A desconsideração da personalidade jurídica, por si só, não afasta a impenhorabilidade do bem de família, salvo se os atos que ensejaram a disregard também se ajustarem às exceções legais. Assim decidiu o STJ (REsp 1.433.636). A arrecadação, no caso, atingiu imóvel adquirido pelo recorrente em 1989, a quebra da empresa foi decretada em 1999, a disregard aplicada em 2005, e se levou em consideração apontado desfalque patrimonial tido, no âmbito penal, como insignificante. Portanto, não pode prevalecer a arrecadação, devendo ser protegido o bem de família, afirmou o tribunal."
Lôbo, Paulo. Direito Civil: Famílias: Vol. 5 . Editora Saraiva. Edição do Kindle. Capítulo 8.7 do livro.
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