"Não vivemos mais na época em que o legislador estabelecia presunções quase intransponíveis de presunção de filiação, calcadas no matrimônio. Na primeira metade do século XX, vigente o Código de 1916, e ainda incipientes as técnicas científicas de investigação filial, a figura do pai quase que se confundia com a do marido. Nos dias de hoje, as presunções resultantes do casamento, vistas quando estudamos o art. 1.597, afiguram-se, obviamente, relativas, admitindo o controle judicial, à luz do princípio da veracidade da filiação. Com o surgimento do exame de DNA, a análise científica do código genético dos pais passou a ser o fator determinante do reconhecimento da filiação. Mas, nesse ponto, sem menoscabarmos a importância desse exame, uma pergunta deve ser feita: ser genitor é o mesmo que ser pai ou mãe? Pensamos que não, na medida em que a condição paterna (ou materna) vai muito mais além do que a simples situação de gerador biológico, com um significado espiritual profundo, ausente nessa última expressão. E, fazendo justiça ao primeiro autor brasileiro a se preocupar com a desbiologização do Direito de Família, lembramos o grande JOÃO BATISTA VILLELA. O que vivemos hoje, no moderno Direito Civil, é o reconhecimento da importância da paternidade (ou maternidade) biológica, mas sem fazer prevalecer a verdade genética sobre a afetiva. Ou seja, situações há em que a filiação é, ao longo do tempo, construída com base na socioafetividade, independentemente do vínculo genético, prevalecendo em face da própria verdade biológica. Estamos, pois, a tratar da paternidade ou maternidade socioafetiva, que reputamos a face mais encantadora do nosso atual Direito de Família, com reflexos na própria jurisprudência do STJ: “Filiação. Anulação ou reforma de registro. Filhos havidos antes do casamento, registrados pelo pai como se fossem de sua mulher. Situação de fato consolidada há mais de quarenta anos, com o assentimento tácito do cônjuge falecido, que sempre os tratou como filhos, e dos irmãos. Fundamento de fato constante do acórdão, suficiente, por si só, a justificar a manutenção do julgado. — Acórdão que, a par de reputar existente no caso uma ‘adoção simulada’, reporta-se à situação de fato ocorrente na família e na sociedade, consolidada há mais de quarenta anos. Status de filhos. Fundamento de fato, por si só suficiente, a justificar a manutenção do julgado. Recurso especial não conhecido” (STJ, REsp 119.346/GO, rel. Min. Barros Monteiro, julgado em 1.º-4-2003, DJ 23-6-2003, p. 371, 4.ª Turma). Cuidou, o julgado supra, da figura da adoção à brasileira, tida como ato ilícito, mas, mesmo assim, ensejando o reconhecimento da filiação, pela socioafetividade, o que já tem sido enfrentado, como dito, pela jurisprudência pátria. Da mesma forma, também já se reconheceu a maternidade socioafetiva. Por tudo isso, é possível se falar, nos dias de hoje, para situações consolidadas no afeto e ao longo do tempo, no ajuizamento de ação de investigação de paternidade socioafetiva, no dizer do erudito TEIXEIRA GIORGIS: “Contudo, é absolutamente razoável e sustentável o ajuizamento de ação declaratória de paternidade socioafetiva, com amplitude contraditória, que mesmo desprovida de prova técnica, seja apta em obter veredicto que afirme a filiação com todas suas consequências, direito a alimentos, sucessão e outras garantias. O que se fará em respeito aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa, solidariedade humana e maior interesse da criança e do adolescente”. A ideia já está consagrada, há algum tempo, na sabedoria popular, na afirmação, tantas vezes ouvida, de que “pai é quem cria”. E é isso mesmo. PAI ou MÃE, em sentido próprio, é quem não vê outra forma de vida, senão amando o seu filho355. O reconhecimento de tal paternidade (ou maternidade) pode se dar pela via judicial ou, até mesmo, administrativa. Independentemente do vínculo sanguíneo, o vínculo do coração é reconhecido pelo Estado com a consagração jurídica da “paternidade socioafetiva”. E, nessa linha, é possível, do ponto de vista fático e — por que não dizer? — jurídico, o reconhecimento de uma pluralidade de laços afetivos, com a eventual admissão de uma multiparentalidade. Mas note-se que, na hipótese em que a família biológica seja impedida de manter o vínculo de afeto, como no caso do sequestro de uma criança, a teoria da filiação socioafetiva não deve ser reconhecida em favor daquele que subtraiu o menor da sua família natural. Destaque-se, por fim, que o Enunciado n. 341 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal expressamente reconheceu o instituto, nos seguintes termos: “Enunciado 341 — Para os fins do art. 1.696, a relação socioafetiva pode ser elemento gerador de obrigação alimentar”. O outro lado da moeda da paternidade socioafetiva é a figura da posse do estado de filho, em que, exteriorizando-se a convivência familiar e a afetividade, admite-se o reconhecimento da filiação. Trata-se do mesmo fenômeno, visto na perspectiva do filho. É o famoso “filho de criação”, cuja adoção não foi formalizada, mas o comportamento, na família, integra-o como se filho biológico fosse. Isso porque, no Direito de Família, a consolidação de uma situação de afeto justifica a presunção de sua existência, para efeito de prova em juízo, como se dá, também, no âmbito da filiação, consoante observa PAULO LÔBO: “A posse do estado de filiação constitui-se quando alguém assume o papel de filho em face daquele ou daqueles que assumem os papéis ou lugares de pai ou mãe ou de pais, tendo ou não entre si vínculos biológicos. A posse de estado é a exteriorização da convivência familiar e da afetividade, segundo as características adiante expostas, devendo ser contínua”. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, inclusive, já se pronunciou expressamente sobre o reconhecimento desta figura: “Apelação Cível. Investigação de paternidade e maternidade. Inteligência do art. 1.614 do Código Civil (antigo art. 362 do CC/16). Decadência reconhecida. Na investigatória de paternidade e/ou maternidade em que o autor não possui pais registrais não há falar em prescrição ou decadência. Todavia, nos casos de prévia existência de uma relação jurídica de parentalidade certificada pelo registro de nascimento, incide o prazo decadencial de quatro anos. Esta restrição de direito se impõe em face do princípio de igualdade de direitos dos filhos, posto no § 6.º do art. 227 da CF, sejam eles havidos ou não da relação de casamento, pois, se entendermos que o filho extramatrimonial pode, a qualquer tempo, vindicar estado distinto daquele que resulta de seu assento de nascimento igualmente teremos que assegurar esta possibilidade aos filhos havidos na vigência do casamento o que — se pode antever — dá oportunidade à total insegurança no seio familiar. Na atualidade, se confrontadas a verdade que emana das informações registrais com a verdade biológica/consanguínea e a verdade social e afetiva, onde houve coincidência entre a verdade registral e a posse de estado de filho fica mantida a relação de parentesco já constituída, em detrimento da identidade genética. De ofício, reconheceram a decadência, extinguindo o processo com julgamento de mérito, por maioria” (Segredo de justiça) (TJRS, Apelação Cível 70015469091, rel. Luiz Felipe Brasil Santos, julgado em 13-9-2006, 7.ª Câm. Cív.). É o reconhecimento de novas modalidades de constituição de família e, consequentemente, de filiação, que se descortina em um Direito de Família mais humano e solidário.
Gagliano, Pablo Stolze; Filho, Rodolfo Mario Veiga Pamplona. Novo Curso de Direito Civil - Direito de Família - Volume 6 - 11ª Edição 2021 (pp. 734-738). Saraiva Jur. Edição do Kindle.
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