"O testamento também é sede profícua para que o testador estabeleça disposições relativas à sua prole, a partir do reconhecimento voluntário de um filho, da nomeação de um tutor, bem como da autorização para realização de procedimento de reprodução assistida post mortem. A eficácia de tais disposições dependerá de suas consequências para o respectivo destinatário, tendo em vista a avaliação de aspectos inerentes à sua personalidade, que poderão ser proeminentes no caso concreto.
A paternidade reconhecida no testamento tanto pode ser a biológica como a socioafetiva. De fato, o Provimento 63 do CNJ admite expressamente que a paternidade ou maternidade socioafetiva seja reconhecida por meio de documento público ou particular de disposição de última vontade, observando-se os trâmites previstos no aludido diploma legal. Importante registrar que apesar de o testamento ser ato essencialmente revogável, o reconhecimento de filho manifestado no ato de última vontade não o é (CC, art. 1.610). O reconhecimento voluntário de filho é ato unilateral. No entanto, para que produza os seus efeitos, deve ser considerada a vontade do reconhecido, se maior, sendo certo que, se menor, poderá impugnar o ato nos quatro anos que se seguirem à maioridade ou emancipação, conforme o disposto no artigo 1.614 do Código Civil. Desse modo, “o consentimento se aproxima mais da eficácia e menos da validade, e por isso mesmo é imprescindível o consentimento para que o ato surta seus efeitos”.
Se o filho não tiver pai registral, a retificação de seu registro civil ocorrerá a partir da inclusão do nome do testador no registro. A questão poderá ensejar discussões nas hipóteses nas quais o filho tem um pai registral, que poderia se opor ao reconhecimento manifestado pelo testamento e ao consentimento do filho quanto à paternidade manifestada no ato de última vontade. A angústia diante dos interesses em conflito seria acentuada na hipótese em que o vínculo socioafetivo do filho também fosse identificado com o pai registral. Para solucionar a problemática, muito embora sejam reconhecidas as divergências existentes na matéria e a sua complexidade, há de levar em conta o interesse do maior interessado no estabelecimento da filiação: sendo o estado de filiação estritamente pessoal, cabe ao filho buscar a própria verdade. O equilíbrio, então, entre o biológico e o socioafetivo é alcançado pela satisfação do interesse daquele de cujo estado se trata.
Uma solução para a questão pode ser a multiparentalidade, admitida em nosso ordenamento jurídico em tese de repercussão geral aprovada pelo Supremo Tribunal Federal, nº 622, assim ementada, in verbis, “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.
Debates podem surgir diante de ações de investigação de paternidade movidas pelo mero interesse patrimonial. Isso porque o artigo 1.609 do Código Civil, na esteira do artigo 26, parágrafo único, do ECA, proíbe que haja o reconhecimento de um filho falecido sem descendência, justamente para evitar que dito ato tenha finalidade exclusivamente sucessória, já que o perfilhante passaria a ser sucessor pela ordem de vocação hereditária. Assim, há autores que defendem a aplicação por analogia do referido artigo 1.609 do Código Civil, quando o filho pretende o reconhecimento movido apenas pela busca da herança, restando provado que já tem ou teve um pai socioafetivo. De outra parte, há quem defenda a prevalência do interesse do filho a ter seu estado vinculado ao pai biológico ou socioafetivo, independentemente do motivo existencial ou patrimonial.
Quanto à reprodução humana assistida post mortem, esta é admitida pelo Conselho Federal de Medicina, desde que haja autorização prévia específica da pessoa falecida para utilização de seu material genético criopreservado, podendo o testamento ser o veículo para a expressão de tal autorização, diante de sua eficácia múltipla. Apesar de não ser o testamento o instrumento exclusivo para tanto, é inegável a sua vantagem, pois o ato de última vontade conta com a formalidade e publicidade, a partir de seu processo de abertura, registro e cumprimento.
O genitor, portanto, através de seu ato de última vontade, poderá estabelecer, inclusive, as condições em relação às quais deseja que sejam utilizadas as técnicas de reprodução assistida post mortem, desde que estas não contrariem as normas deontológicas médicas, como a impossibilidade de se selecionar o sexo ou qualquer outra característica biológica do filho, exceto quando se trate de evitar doenças ligadas ao sexo. Desse modo, o genitor poderá estipular um prazo para que seja utilizado o material congelado, bem como estabelecer que a reprodução assistida post mortem estará vedada se ele tiver gerado um filho em vida, dentre outras. Tais condições, uma vez em consonância com os valores constitucionais, deverão ser respeitadas, por dizerem respeito a aspecto inerente à dignidade do testador, em relação ao qual deve prevalecer sua liberdade."
Fonte: Tepedino, Gustavo; Nevares, Ana Luiza Maia; Meireles, Rose Melo Vencelau. Fundamentos do Direito Civil (p. 311-313). Forense. Edição do Kindle.
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