"Uma vez reconhecida a legitimidade do cônjuge para suceder, consoante o disposto no artigo 1.830 do Código Civil, passa-se ao exame da disciplina de seus direitos hereditários, segundo o disposto no artigo 1.829 do mesmo diploma legal.
Conforme o inciso I do artigo 1.829, o cônjuge sobrevivente concorre com os descendentes na sucessão de seu consorte. Nessa hipótese, o Código Civil estabelece mais um requisito para compor o direito hereditário do cônjuge: trata-se do exame do regime de bens do casamento. Realmente, a tutela patrimonial do cônjuge no direito brasileiro traduz-se em dois aspectos distintos: o regime de bens do casamento e a sucessão causa mortis. Cuida-se de sistema integrado no âmbito do qual, em regra, na evolução legislativa brasileira, a maior proteção conferida no regime de bens associa-se à diminuição da tutela no plano sucessório. Daí a necessidade de interpretarem-se ambas as disciplinas jurídicas de modo sistemático, para se alcançar plenamente a função promocional e protetiva do cônjuge pretendida pelo ordenamento.
De fato, conjugar os direitos sucessórios do cônjuge ao regime de bens permite que o pressuposto sucessório do cônjuge não esteja assentado exclusivamente na conjugalidade, já que, diante do regime de bens adotado no casamento, pode-se disciplinar a tutela sucessória do cônjuge a partir de análise concreta da proteção patrimonial que deve ser dispensada ao consorte, levando em conta a divisão de patrimônio que terá lugar por força do regime de bens.
No entanto, ao elevar o cônjuge à categoria de herdeiro necessário, pode-se dizer que a solução se mostra, em certa medida, paradoxal, vez que, em matéria de regime de bens, garantiu o legislador ampla flexibilidade àqueles que pretendem se casar. Com efeito, o legislador confere ampla discricionariedade aos nubentes para fixarem o regime que melhor lhes convier, além de permitir sua alteração a qualquer tempo (art. 1.639, caput e § 2º). Ademais, previu plena liberdade para alienação de bens no âmbito do regime da separação absoluta (art. 1.647, I) e, no regime de participação final nos aquestos, garantiu a livre administração dos bens (art. 1.673, parágrafo único), assim como a possibilidade convencional de sua livre disposição (art. 1.656). De fato, a mesma liberdade não resta garantida no âmbito sucessório.
Na hipótese de concorrência com os descendentes, o cônjuge não participará da sucessão de seu consorte se casado com o falecido pelo regime da comunhão universal de bens, da separação obrigatória e da comunhão parcial quando não há bens particulares. Por conseguinte, a sucessão do cônjuge em concorrência com os descendentes terá lugar, conforme o disposto no artigo 1.829, I, quando o casamento tiver sido celebrado pelos regimes da separação total convencional de bens, da participação final nos aquestos, da comunhão parcial existindo bens particulares e nas hipóteses pouco frequentes dos regimes mistos, estabelecidos por força da liberdade das convenções antenupciais (CC, art. 1.639, caput).
Verifica-se, portanto, que o cônjuge é afastado da sucessão quando em virtude do regime de bens já tem proteção patrimonial por força da meação. Igualmente, o cônjuge não herdará juntamente com os descendentes se o regime de bens do casamento era aquele da separação obrigatória. Se nestes casos o legislador entendeu necessário afastar qualquer comunhão entre os cônjuges, também na sucessão em concorrência com os descendentes seguiu a lei a mesma orientação de separação dos patrimônios.
Diversas controvérsias surgiram diante da disposição contida no artigo 1.829, inciso I, do Código Civil. Inicialmente, discute-se a sucessão do cônjuge casado pelo regime da comunhão parcial de bens quando o falecido deixou bens particulares. Apesar da ressalva em relação aos bens exclusivos do falecido, verificar hipótese prática em que o cônjuge nesta circunstância não seja herdeiro em concorrência com os descendentes é quase impossível, pois a existência de bens particulares é praticamente certa em todos os casamentos regidos pelo aludido regime. De fato, basta pensar no elenco determinado pelo artigo 1.659 do Código Civil, que estabelece os bens que não entram na comunhão, para verificar que sempre existirão bens particulares. Na hipótese em questão, discute-se a massa de bens sobre a qual incide o direito sucessório do cônjuge: somente quanto aos bens particulares do autor da herança ou sobre todo o acervo hereditário (meação do finado + bens particulares).
A discussão é relevante. De um lado, posicionam-se aqueles que defendem que a sucessão do cônjuge deve incidir apenas sobre os bens particulares, uma vez que a ratio do inciso I do artigo 1.829 foi afastar o cônjuge meeiro da sucessão. De outro lado, porém, está a posição que defende a técnica do Direito Sucessório, tendo em vista que, sendo a herança uma universalidade de direito, que é transmitida como um todo unitário aos sucessores (CC, art. 1.791), só poderão existir sucessões especiais (ou seja, em bens específicos) se o legislador assim determinar de forma expressa, o que não foi o caso do inciso I, do artigo 1.829, do Código Civil. A questão foi discutida no âmbito da III Jornada de Direito Civil, quando foi aprovado o enunciado 270, proclamando a sucessão do cônjuge apenas sobre os bens particulares12.
Em outra direção, sustenta-se que a existência do ponto e vírgula separando a redação do inciso I do artigo 1.829 indica que o legislador pretendeu tratar de duas situações distintas: aquela da comunhão universal e da separação legal de bens e a aquela relativa à comunhão parcial, não se podendo aplicar na segunda hipótese a expressão “salvo se” da primeira hipótese13. Nessa linha, sustenta-se que nos casos de comunhão parcial sem bens particulares significa que todo o acervo hereditário foi adquirido depois do casamento e, então, ocorrendo a presunção da mútua colaboração para a aquisição do referido patrimônio, resta razoável que o cônjuge concorra com os filhos na herança composta pelos bens comuns, recebendo, ainda, a sua meação.
Tal posição foi adotada pelo Superior Tribunal de Justiça em alguns acórdãos, ao argumento de que, ao optarem pelo regime da comunhão parcial de bens, os nubentes assumiram que apenas os bens adquiridos onerosamente na vigência do casamento poderiam ser comuns, não sendo possível que o cônjuge concorresse quanto aos bens particulares, que deveriam ser destinados apenas aos descendentes, uma vez que, pelo regime de bens em comento, os bens particulares são exclusivos do cônjuge titular, não se comunicando com o outro. A linha de pensamento acima defende a projeção das consequências do regime de bens do casamento na atribuição de direitos sucessórios ao cônjuge, ao argumento de que a vontade dos nubentes subjacente à escolha do regime patrimonial de bens deve se espelhar na sucessão hereditária. Essa posição foi adotada pelo aludido Tribunal Superior nos julgamentos de casos de sucessão do cônjuge casado pelo regime da separação convencional de bens em concorrência com os descendentes. Nestes casos, o cônjuge foi afastado da sucessão por força da eleição de tal regime, apesar da expressa previsão legal em sentido contrário.
Tais conclusões, contudo, ferem a sistemática legal da sucessão do consorte sobrevivente. Primeiramente, deve-se registrar a já mencionada evolução dos direitos sucessórios do cônjuge no ordenamento jurídico brasileiro: do quarto lugar na ordem de vocação hereditária, atrás dos parentes colaterais até o décimo grau, o cônjuge passou a herdeiro necessário em propriedade plena no Código Civil, concorrendo com os descendentes e ascendentes, passando por usufrutuário na disciplina da Lei nº 4.121/62, que alterou a redação do artigo 1.611 do Código Civil de 1916. Trata-se de resposta às profundas alterações por quais passou a família, que culminaram com a consagração da família como instrumento de promoção da dignidade e da personalidade de cada um de seus membros (CR, art. 226, § 8º). Assim, não se poderia mais relegar o vínculo conjugal ao segundo plano. Nessa direção, foram estabelecidas as regras sucessórias do Código Civil, que conferiram ao cônjuge quota da herança em propriedade plena, estabelecendo a sua concorrência com os descendentes e com os ascendentes.
Na primeira hipótese, ou seja, na concorrência com os descendentes, identifica-se pela redação do citado artigo 1.829, inciso I, do Código Civil, que o legislador teve por objetivo submeter os direitos sucessórios do cônjuge ao regime de bens do casamento, mas não projetar o regime de bens na atribuição dos direitos hereditários do cônjuge. Além disso, a liberdade dos nubentes no pacto antenupcial quanto ao destino de seus bens após a morte é tolhida em virtude da determinação contida no artigo 426 do Código Civil, que impede que a herança seja objeto de contrato. Assim, resta incompatível com o sistema justificar a exclusão do cônjuge casado pelo regime da separação total convencional de bens da sucessão ao argumento de que a escolha de dito regime é pautada pela vontade dos nubentes em impedir a comunhão de patrimônio. Afinal, essa vontade em relação à herança seria vedada nos negócios inter vivos (pacta corvina).
A matéria foi pacificada pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, que prestigiou a previsão legal, reconhecendo a sucessão do cônjuge, como herdeiro necessário, em concorrência com os descendentes quando casado no regime da separação convencional de bens e, ainda, prevendo que no regime da comunhão parcial de bens o cônjuge deve suceder apenas quanto aos bens particulares do de cujus."
Fonte: Tepedino, Gustavo; Nevares, Ana Luiza Maia; Meireles, Rose Melo Vencelau. Fundamentos do Direito Civil (pp. 181-186). Forense. Edição do Kindle.
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