"Muito se tem falado, nos últimos tempos, sobre a chamada adoção à brasileira, ou socioafetiva, que é a aquela em que se assume a paternidade ou a maternidade sem o devido processo legal, resultando a mesma do reconhecimento de um estado de fato existente há certo período de tempo. Transparece sobretudo o reconhecimento espontâneo da paternidade (que é mais comum relativamente à assunção da maternidade) daquele que, mesmo sabendo não ser o pai biológico, registra como seu o filho de outrem. Indo mais longe, também se admite a paternidade em razão do desconhecimento da paternidade biológica, desde que se tenha exercido uma manifestação de vontade, através do encaminhamento do ato do registro, com a declaração expressa da paternidade. Em verdade, embora desconhecendo que outra pessoa seja o pai, mas verificando-se, no curso dos anos, no tratamento dispensado uma relação de pai para filho, tipifica-se uma verdadeira adoção, que se torna irrevogável, a ponto de não se admitir, posteriormente, a pretensão de anular o registro de nascimento. Tem valor, para a pessoa humana, passando a adquirir feição jurídica, uma situação de fato revelada numa verdadeira relação de pai para filho. Por questões de herança, não se acolhe, após a morte da pessoa que aparece como pai, o pedido de outros filhos e mesmo do cônjuge supérstite de declaração de falsa paternidade.
Especialmente se aquele que consta como pai tem pleno conhecimento das circunstâncias que gravitam em torno de seu gesto e, ainda assim, não providenciou alterar o ato quando da ciência, não se lhe permite, mais tarde, por arrependimento, valer-se de eventual ação anulatória, postulando desconstituir o registro.
Acontece que se dá mais consideração à pessoa humana, já que a conduta do reconhecimento no correr do tempo gera efeitos decisivos na vida da criança de fato adotada, operando-se a formação da paternidade socioafetiva.
Esse tipo de adoção, no rigor formalístico da lei, é considerado crime, definido no artigo 242 do Código Penal, e ocorre quando alguém, sem observar o regular procedimento de adoção imposto pela Lei Civil, registra a criança como filha. No entanto, interessa ao direito a pessoa humana daquele que teve um pai, em uma realidade que se perpetuou através dos anos.
Acontece que não há como desfazer um ato levado a efeito com perfeita demonstração da vontade daquele ou daquela que, um dia, declarou perante a sociedade ser pai ou mãe da criança, valendo-se da verdade socialmente construída com base no afeto. Restou consumada, através do tempo, a relação de filiação que se criou e consolidou.
Adquiriu foros de dogma esse entendimento no STJ:
“O reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo socioafetivo entre pais e filhos. A ausência de vínculo biológico é fato que por si só não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento. A relação socioafetiva é fato que não pode ser, e não é, desconhecido pelo Direito. Inexistência de nulidade do assento lançado em registro civil. O STJ vem dando prioridade ao critério biológico para o reconhecimento da filiação naquelas circunstâncias em que há dissenso familiar, em que a relação socioafetiva desapareceu ou nunca existiu. Não se pode impor os deveres de cuidado, de carinho e de sustento a alguém que, não sendo o pai biológico, também não deseja ser pai socioafetivo. A contrario sensu, se o afeto persiste de forma que pais e filhos constroem uma relação de mútuo auxílio, respeito e amparo, é acertado desconsiderar o vínculo meramente sanguíneo, para reconhecer a existência de filiação jurídica. Da mesma forma se posicionou a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça ao julgar o recurso especial nº 1.088.157/PB: ‘Ora, se nem mesmo aquele que procedeu ao registro, tomando como sua filha que sabidamente não é, teve a iniciativa de anulá-lo, não se pode admitir que um terceiro (a viúva) assim o faça. Ademais, a própria concepção da adoção à brasileira traz consigo a ideia de que o sujeito tinha conhecimento de que não estava a registrar filho próprio, portanto, incompatível com a noção de erro’. Para o STJ, quem adota à brasileira tem pleno conhecimento das circunstâncias que gravitam em torno de seu gesto. Nestas circunstâncias, nem mesmo o pai, por arrependimento posterior, pode se valer de eventual ação anulatória postulando desconstituir o registro civil.”
Todavia, por ser um direito de personalidade saber a origem da pessoa, indisponível e imprescritível, o próprio STJ firmou a liberdade da pessoa em descobrir qual sua origem e a filiação:
“A ‘adoção à brasileira’, inserida no contexto de filiação socioafetiva, caracteriza-se pelo reconhecimento voluntário da maternidade/paternidade, na qual, fugindo das exigências legais pertinentes ao procedimento de adoção, o casal (ou apenas um dos cônjuges/companheiros) simplesmente registra a criança como sua filha, sem as cautelas judiciais impostas pelo Estado, necessárias à proteção especial que deve recair sobre os interesses do menor. O reconhecimento do estado de filiação constitui direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado sem qualquer restrição, em face dos pais ou seus herdeiros. O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, estabelecido no art. 1º, inc. III, da CF/88, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, traz em seu bojo o direito à identidade biológica e pessoal. Caracteriza violação ao princípio da dignidade da pessoa humana cercear o direito de conhecimento da origem genética, respeitando-se, por conseguinte, a necessidade psicológica de se conhecer a verdade biológica. A investigante não pode ser penalizada pela conduta irrefletida dos pais biológicos, tampouco pela omissão dos pais registrais, apenas sanada, na hipótese, quando aquela já contava com 50 anos de idade. Não se pode, portanto, corroborar a ilicitude perpetrada, tanto pelos pais que registraram a investigante, como pelos pais que a conceberam e não quiseram ou não puderam dar-lhe o alento e o amparo decorrentes dos laços de sangue conjugados aos de afeto. Dessa forma, conquanto tenha a investigante sido acolhida em lar ‘adotivo’ e usufruído de uma relação socioafetiva, nada lhe retira o direito, em havendo sua insurgência ao tomar conhecimento de sua real história, de ter acesso à sua verdade biológica que lhe foi usurpada, desde o nascimento até a idade madura. Presente o dissenso, portanto, prevalecerá o direito ao reconhecimento do vínculo biológico. Nas questões em que presente a dissociação entre os vínculos familiares biológico e socioafetivo, nas quais seja o Poder Judiciário chamado a se posicionar, deve o julgador, ao decidir, atentar de forma acurada para as peculiaridades do processo, cujos desdobramentos devem pautar as decisões. Recurso especial provido.”
Orienta o STJ, também, que não se permite ao adotante a impugnação ou a busca da nulidade depois de já constituído o vínculo socioafetivo:
“Em se tratando de adoção à brasileira, a melhor solução consiste em só permitir que o pai-adotante busque a nulidade do registro de nascimento, quando ainda não tiver sido constituído o vínculo de socioafetividade com o adotado.”91 São apresentadas as razões no voto do Relator: “Com essas ponderações, em se tratando de adoção à brasileira, a melhor solução consiste em só permitir que o pai-adotante busque a nulidade do registro de nascimento, quando ainda não tiver sido constituído o vínculo de socioafetividade com o adotado. Após formado o liame socioafetivo, não poderá o pai-adotante desconstruir a posse do estado de filho que já foi confirmada pelo véu da paternidade socioafetiva. Ressalte-se, por oportuno, que tal entendimento, todavia, é válido apenas na hipótese de o pai-adotante pretender a nulidade do registro. Não se estende, pois, ao filho adotado, a que, segundo entendimento deste Superior Tribunal de Justiça, assiste o direito de, a qualquer tempo, vindicar judicialmente a nulidade do registro em vista à obtenção do estabelecimento da verdade real, ou seja, da paternidade biológica (...). Por essa razão, como, na espécie, já houve a formação da paternidade socioafetiva, o entendimento acima conduz a que o registro de nascimento, embora inquinado pela adoção à brasileira, não é mais passível de anulação por ação do pai adotante (ou, in casu, viúva deste). Por fim, ressalve-se que a legitimidade ad causam da viúva do adotante para iniciar uma ação anulatória de registro de nascimento não é objeto do presente recurso especial. Por isso, a questão está sendo apreciada em seu mérito, sem abordar a eventual natureza personalíssima da presente ação. Assim, nega-se provimento ao recurso especial.”
A matéria é realmente controvertida, dominando ultimamente a tendência de se admitir a investigação de paternidade se intentada a ação pelo filho biológico, mas unicamente para conhecer a verdade biológica, sem desconstituir a filiação socioafetiva, como se pode ver do seguinte aresto:
“É consectário do princípio da dignidade humana o reconhecimento da ancestralidade biológica como direito da personalidade, podendo a ação de investigação de paternidade e de nulidade de registro ser julgada procedente mesmo que tenha sido construída uma relação socioafetiva entre o filho e o pai registral.”
Essa abertura não vai ao ponto de desconstituir a filiação socioafetiva, caso constituída. Isto porque, numa interpretação atual e axiológica do art. 227 e de seu § 6º da CF, há igualdade absoluta dos filhos, não importando a origem ou o nascimento.
Sobre a ação para meros efeitos de descobrir a verdade biológica, decidiu o TJ do RGS:
“Apelação cível. Investigação de paternidade. Paternidade socioafetiva com o pai registral reconhecida. Pretensão que visa exclusivamente aos efeitos patrimoniais decorrentes da filiação biológica. Caso concreto em que reconhecida a vinculação socioafetiva entre o demandante e seu pai registral, que perdurou por anos, exercendo, o autor, os direitos decorrentes dessa filiação, com o recebimento da herança deixada pelo de cujus. Pertinente, apenas, o reconhecimento da origem genética, que restou irrefutável diante da conclusão da prova técnica – exame de DNA, sem reconhecer os direitos patrimoniais e, tampouco, alterar o registro civil do demandante, sob pena de se desfigurar os princípios basilares do Direito de Família. Sentença confirmada. Apelo desprovido.”
Rizzardo, Arnaldo. Direito de Família (p. 548-541). Forense. Edição do Kindle.
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