"Tese que tem empolgado uma geração de inovadores do direito de família, está na pluri ou multiparentalidade, ou dupla parentalidade, dando realce ao filho ter mais de um pai ou de uma mãe.
Acontece essa viabilidade quando uma criança, embora com registro do pai biológico, desde a mais tenra idade está na guarda da mãe, a qual casa ou se une a outro homem. Este passa a criar o filho ou a filha da mulher ou companheira, dando-lhe um tratamento próprio de pai, isto é, com amor, carinho, acompanhamento diuturno, e assim seguindo ao longo dos anos, de modo a se criar uma relação socioafetiva de pai e filho. É o que se denomina de paternidade socioafetiva. A situação pode se inverter, em relação à mulher, dando-se duas mães à criança.
Nessas situações, não exsurgem maiores dificuldades quando desaparece o pai biológico, não mais procurando o filho. Todavia, existem casos em que se mantém o afeto entre o pai biológico e o filho, mas também se criando um vínculo de afetividade muito forte com o padrasto. Não é inviável que tal realidade aconteça em relação à mãe biológica, quando o filho é entregue à guarda do pai, que se une a outra mulher, seja através do casamento ou da união estável.
Em um ou outro caso, perdurando a afetividade, aparecem decisões que permitem a dupla paternidade ou maternidade. Retifica-se o registro original para incluir o nome de um segundo pai ou uma segunda mãe.
Exemplo de decisão é a seguinte:
“Maternidade socioafetiva. Preservação da Maternidade Biológica. Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família – Enteado criado como filho desde dois anos de idade - Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes – A formação da família moderna não consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade - Recurso provido”.
Essa alteração no registro civil traz sérios efeitos. Primeiramente, há um rompimento da ordem natural, com a criação de um modelo de filiação que desconstitui a paternidade ou maternidade natural. No âmbito pessoal do filho, traz uma indefinição de sua origem e insegurança na própria hierarquia dos progenitores naturais e os instituídos, a par de outros desacertos da personalidade. É possível o surgimento de conflitos internos, e, inclusive, de concorrências na disputa das preferências. Havendo dois pais, ou duas mães, um ou outro poderá agradar mais ao filho, satisfazer seus caprichos exageradamente, de modo a atrair a preferência por sua pessoa. Igualmente, quanto ao filho se possibilita um sentimento de insegurança ou instabilidade, em relação a quem agradar mais ou a quem obedecer. No afã de avançar e impressionar nas inovações, cometem-se atentados e violências às pessoas em formação.
Não se tira de cogitação as diferenças de sistemas de educação, dada a procedência diversa de pensamento, de convicções, de formação e de origem.
Quanto às obrigações de alimentos, na eventualidade de separação do pai afetivo da mãe biológica, ou vice-versa, mister redefinir os encargos, inclusive impondo o dever ao progenitor biológico, se antes não prestava assistência.
No registro civil, em vista do art. 54, itens 7º e 8º, da Lei 6.015/73 – Lei de Registros Públicos –, no registro deverão constar os nomes e prenomes dos pais e dos avós maternos e paternos. Assim, no registro de nascimento constará como pais os nomes dos pais biológicos, do pai ou mãe socioafetivo(a), bem como constarão como avós todos os ascendentes destes. Poderá o filho usar o nome de todos os pais.
No campo sucessório, obviamente o filho herdará os bens dos dois pais ou das duas mães.
O Supremo Tribunal Federal, em decisão festejada por aqueles que, ávidos de novidades, não encaram as consequências dos desvios da natureza do ser humano, à luz de mal interpretados princípios constitucionais, como o art. 226, §§ 3º, 4º, 6º e 7º, e do direito comparado, admitiu a dupla paternidade (dual paternity) ou maternidade.
Veja-se parte da ementa que tratou do assunto, entornando princípios que acompanham desde as origens o ser humano, e que revela o afã do típico evolucionismo pragmático do direito, mas sem impacto metafísico, em decisão com repercussão geral:
“... Multiplicidade de vínculos parentais. Reconhecimento concomitante. Possibilidade. Pluriparentalidade. Princípio da paternidade responsável (art. 226, § 7º, CRFB). Recurso a que se nega provimento. Fixação de tese para aplicação a casos semelhantes...”.
É longo e repleto de criação cultural o voto do relator, Min. Luis Fux, transcrevendo-se as seguintes passagens:
“Estabelecida a possibilidade de surgimento da filiação por origens distintas, é de rigor estabelecer a solução jurídica para os casos de concurso entre mais de uma delas. O sobreprincípio da dignidade humana, na sua dimensão de tutela da felicidade e realização pessoal dos indivíduos a partir de suas próprias configurações existenciais, impõe o reconhecimento, pelo ordenamento jurídico, de modelos familiares diversos da concepção tradicional. O espectro legal deve acolher, nesse prisma, tanto vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto aqueles originados da ascendência biológica, por imposição do princípio da paternidade responsável, enunciado expressamente no art. 226, § 7º, da Constituição. Não cabe à lei agir como o Rei Salomão, na conhecida história em que propôs dividir a criança ao meio pela impossibilidade de reconhecer a parentalidade entre ela e duas pessoas ao mesmo tempo. Da mesma forma, nos tempos atuais, descabe pretender decidir entre a filiação afetiva e a biológica quando o melhor interesse do descendente é o reconhecimento jurídico de ambos os vínculos. Do contrário, estar-se-ia transformando o ser humano em mero instrumento de aplicação dos esquadros determinados pelos legisladores. É o direito que deve servir à pessoa, não o contrário. O conceito de pluriparentalidade não é novidade no Direito Comparado. Nos Estados Unidos, onde os Estados têm competência legislativa em matéria de Direito de Família, a Suprema Corte de Louisiana ostenta jurisprudência consolidada quanto ao reconhecimento da ‘dupla paternidade’ (dual paternity). No caso Smith v. Cole (553 So.2d 847, 848), de 1989, o Tribunal aplicou o conceito para estabelecer que a criança nascida durante o casamento de sua mãe com um homem diverso do seu pai biológico pode ter a paternidade reconhecida com relação aos dois, contornando o rigorismo do art. 184 do Código Civil daquele Estado, que consagra a regra ‘pater ist est quem nuptiae demonstrant’. Nas palavras da Corte, a ‘aceitação, pelo pai presumido, intencionalmente ou não, das responsabilidades paternais, não garante um benefício para o pai biológico. (...) O pai biológico não escapa de suas obrigações de manutenção do filho meramente pelo fato de que outros podem compartilhar com ele da responsabilidade (The presumed father’s acceptance of paternal responsibilities, either by intent or default, does not ensure to the benefit of the biological father. (...) The biological father does not escape his support obligations merely because others may share with him the responsibility’). Em idêntico sentido, o mesmo Tribunal assentou, no caso T.D., wife of M.M.M. v. M.M.M., de 1999 (730 So. 2d 873), o direito do pai biológico à declaração do vínculo de filiação em relação ao seu filho, ainda que resulte em uma dupla paternidade. Ressalvou-se, contudo, que o genitor biológico perde o direito à declaração da paternidade, mantendo as obrigações de sustento, quando não atender ao melhor interesse da criança, notadamente nos casos de demora desarrazoada em buscar o reconhecimento do status de pai (‘a biological father who cannot meet the best-interest-of-the-child standard retains his obligation of support but cannot claim the privilege of parental rights’).
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Na doutrina brasileira, encontra-se a valiosa conclusão de Maria Berenice Dias, in verbis: ‘não mais se pode dizer que alguém só pode ter um pai e uma mãe. Agora é possível que pessoas tenham vários pais. Identificada a pluriparentalidade, é necessário reconhecer a existência de múltiplos vínculos de filiação. Todos os pais devem assumir os encargos decorrentes do poder familiar, sendo que o filho desfruta de direitos com relação a todos. Não só no âmbito do direito das famílias, mas também em sede sucessória. (...) Tanto é este o caminho que já há a possibilidade da inclusão do sobrenome do padrasto no registro do enteado’ (Manual de Direito das Famílias. 6ª. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 370). Tem-se, com isso, a solução necessária ante os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da paternidade responsável (art. 226, § 7º)”.
Deu-se a criação do Tema 622, que serve de parâmetro para as decisões de casos semelhantes:
“A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.
Sérios os efeitos que demandam do enunciado, inclusive de caráter sucessório, podendo o filho herdar do pai biológico e do pai afetivo, ou seja, de todos os progenitores reconhecidos e constantes do registro civil, ou que vierem a ser admitidos em processos judiciais."
Fonte: Rizzardo, Arnaldo. Direito de Família (p. 385-388). Forense. Edição do Kindle.
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