Advogado familiar fala sobre a outorga uxória na compra e venda de vários bens.
"Neste tópico, cabe tecermos algumas considerações sobre a autorização conjugal para a prática de determinados atos jurídicos. Tal tema era conhecido tradicionalmente, nos manuais de Direito de Família, como o instituto da outorga uxória. Trata-se de figura jurídica de longa tradição, que, originalmente, tinha por finalidade preservar o patrimônio do casal de potenciais riscos assumidos somente pelo marido, na concepção histórica deste como “chefe da família”. Assim, para que o marido pudesse praticar específicas condutas, relacionadas aos bens do casal, exigia-se o consentimento expresso da mulher, daí a expressão “outorga uxória”, pois a palavra “uxória”, do ponto de vista etimológico, deriva do latim uxoriu, referente à mulher casada (assim como a expressão “marital”, decorrente do latim maritale, refere-se tanto ao marido, quanto ao matrimônio). Com o advento do princípio da igualdade entre homens e mulheres e, consequentemente, no campo específico das relações familiares, entre cônjuges, parece-nos que a expressão, embora consagrada pelo uso tradicional, não deva ser mais tão prestigiada. Note-se, a propósito, que o vigente Código Civil brasileiro, em nenhum momento sequer, utiliza a expressão “outorga uxória”, o que reforça a ideia de superação do conceito. Assim, da mesma forma como o conhecido “pátrio poder” passou a ser denominado e compreendido, de maneira mais abrangente, como “poder familiar”, a expressão “outorga uxória” deve ser atualizada para “autorização conjugal”, que é muito mais ilustrativa e técnica. Além disso, a expressão “autorização conjugal” é também mais precisa do que, por exemplo, “autorização marital” ou “outorga marital”, pois, embora, como dito, a palavra “marital” também tenha a conotação de “conjugal”, seu conteúdo plurissignificativo também remonta a situações, revogadas no vigente Código Civil brasileiro, mas presentes na antiga codificação, em que determinados atos jurídicos somente poderiam ser praticados pela mulher com autorização do marido. Assim, a “autorização conjugal” pode ser conceituada como a manifestação de consentimento de um dos cônjuges ao outro, para a prática de determinados atos, sob pena de invalidade. A matéria está atualmente disciplinada nos arts. 1.647 a 1.650 do vigente Código Civil brasileiro. Dispõe o mencionado art. 1.647, CC/2002:
“Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta: I — alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis; II — pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos; III — prestar fiança ou aval; IV — fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura meação. Parágrafo único. São válidas as doações nupciais feitas aos filhos quando casarem ou estabelecerem economia separada”. Todas as hipóteses legais se referem a situações em que o patrimônio do casal é potencialmente afetado, motivo pelo qual se exige a autorização. Da leitura do caput do dispositivo, observamos, de logo, que a necessidade da autorização conjugal é dispensável para aqueles casados “no regime de separação absoluta”. Nesse ponto, poderia o legislador ter facilitado o trabalho do intérprete, evitando a confusa expressão “separação absoluta”. Isso porque, em nosso sistema, como se sabe, convivem dois tipos de separação: a legal ou obrigatória e a convencional. Afinal, ao mencionar “separação absoluta”, a qual das duas estaria o codificador se referindo? Em nosso sentir, a dita expressão caracteriza a separação convencional de bens — aquela livremente pactuada pelo casal — e não a separação obrigatória, pela simples razão de que, nessa última hipótese, existe a possibilidade de comunhão de bens, a teor da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal. Ora, se existe a possibilidade de meação na separação obrigatória é porque, logicamente, não poderemos reputá-la “absoluta”, havendo, portanto, razão e interesse na manutenção da autorização do outro cônjuge. Em suma, somente os cônjuges casados sob o regime de separação convencional (absoluta) de bens estão dispensados da necessidade da autorização conjugal para a prática dos atos previstos no art. 1.647 do Código Civil. Nesse mesmo sentido, observa RICARDO KOLLET: “Assim, entendemos que o único regime em que não existe possibilidade de comunicação entre os bens é o da separação expressamente convencionada mediante pacto antenupcial, o que nos leva a concluir que o legislador a qualifica como absoluta. No que diz respeito à separação obrigatória (legal), entende-se aplicável, ainda, a súmula referida, havendo assim possibilidade de comunicação entre os bens adquiridos durante o casamento, razão pela qual ela se desqualifica como absoluta. O que permite concluir que, em relação ao primeiro problema formulado neste estudo, a outorga uxória ou marital somente é dispensada nos casos arrolados nos incisos do artigo 1.647, quando o regime de bens for o da separação convencional. Com mais propriedade ainda pode-se ratificar o que já foi dito, baseado no que dispõe o artigo 1.687 do Código Civil, que possibilita a cada um dos cônjuges alienar ou gravar livremente os bens, quando for ‘estipulada’ a separação de bens”469. Acrescente-se a essa exceção a ressalva prevista no art. 1.656, segundo a qual, no pacto antenupcial, que adotar o regime de participação final nos aquestos, podem os cônjuges convencionar a livre disposição dos bens imóveis, desde que particulares. Mas vale salientar que, nesse último caso, a dispensa somente se refere à “disposição de bens imóveis”, de maneira que, se qualquer dos consortes pretender praticar qualquer dos atos previstos no art. 1.647 precisará da anuência do outro. E é bom ainda ressaltar, amigo leitor, que a dispensa da autorização (em favor das pessoas casadas em regime de separação convencional ou participação final nos termos do art. 1.656), fora dessas situações excepcionais mencionadas, não se estenderá a outros regimes, ainda que se pretenda alienar bens do próprio patrimônio pessoal. Um exemplo tornará claro o nosso raciocínio. Ainda que João, casado com Maria em comunhão parcial, pretenda vender ou doar um bem exclusivamente seu, necessitará da anuência da sua esposa, uma vez que a ressalva legal para a dispensa do consentimento tomou por conta o tipo de regime adotado e não a origem do bem! Ora se casados estão em comunhão parcial, em face da potencial repercussão na estabilidade econômica do casal que qualquer dos atos previstos no art. 1.647 pode ocasionar, a alienação deste bem demandará a necessária aquiescência do outro. Isso porque, repita-se, o legislador apenas dispensou a outorga para pessoas casadas em regime de separação convencional ou participação final nos termos do art. 1.656, independentemente da origem do bem. Posto isso, passemos em revista as hipóteses elencadas para as quais se exige a autorização conjugal. Primeiramente, estabeleceu-se a necessidade para a prática de atos de alienação ou estipulação de ônus reais sobre imóveis (inciso I). Assim, se o marido, por exemplo, pretende vender um imóvel, ou hipotecá-lo, precisará da anuência da sua esposa. Todavia, vale anotar que para a aquisição de um bem imobiliário — um apartamento, por exemplo — a autorização não é exigida pela norma legal. Na mesma linha, o inciso II, de impacto mais profundamente processual, exige a autorização conjugal para se pleitear, como autor ou réu, acerca de bens imóveis ou dos direitos a eles relacionados. O inciso III, por sua vez, exige a anuência do outro consorte para prestar fiança ou aval. A novidade é a exigência para a estipulação do aval, garantia tipicamente cambiária, que não estava prevista no Código Civil de 1916. Com isso, a título ilustrativo, se a esposa pretender prestar uma fiança (ou um aval), necessitará colher a aquiescência do seu marido, sob pena de invalidade, conforme veremos abaixo. Por isso, o credor — em favor de quem se presta a garantia pessoal — deverá ter o cuidado de exigir essa intervenção, para que não tenha a sua expectativa frustrada. Finalmente, o inc. IV, de dicção simples, também exige a anuência, para se fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura meação. Cumpre lembrar ainda, a teor do parágrafo único, serem válidas as doações nupciais feitas aos filhos quando casarem ou estabelecerem economia separada. Duas fundamentais indagações, nesse ponto, deverão ser feitas. Qual a solução para o caso de o cônjuge injustamente negar a sua anuência? Qual seria a consequência jurídica decorrente da prática de qualquer dos atos capitulados no art. 1.647 sem a necessária autorização conjugal? À primeira pergunta, responde-nos o art. 1.648, CC/2002: “Art. 1.648. Cabe ao juiz, nos casos do artigo antecedente, suprir a outorga, quando um dos cônjuges a denegue sem motivo justo, ou lhe seja impossível concedê-la”. Caso o cônjuge não possa dar a autorização — por estar doente, por exemplo — o suprimento, em tal caso, desafiará um simples procedimento de jurisdição voluntária, instaurado pelo interessado, nos termos dos arts. 719 e s. do Código de Processo Civil de 2015 (equivalentes aos arts. 1.103 e s. do CPC/1973). Mas, se não quiser autorizar, diante da resistência apresentada e da lide configurada, deverá o interessado, consequentemente, deduzir a sua pretensão em juízo, propondo efetivamente uma demanda contra o seu consorte. Nesse ponto, uma reflexão de cunho eminentemente processual merece ser feita. Vimos que, à luz do inciso II, do art. 1.647, a anuência do outro cônjuge, em regra, é imperiosa para se pleitear, como autor ou réu, acerca de bens imóveis ou dos direitos a eles relacionados. Se, no polo passivo, a presença do outro cônjuge como litisconsorte necessário resolve qualquer dúvida de adequação procedimental, nas demandas que versem sobre direitos imobiliários, questionável é a exigência de participação dos dois cônjuges no polo ativo, como autores. Afinal, se um dos cônjuges não puder ou não quiser propor a demanda? Como se sabe, não existe litisconsórcio ativo necessário. Em nosso sentir, caso esteja impedido de participar da propositura da demanda, deverá o outro cônjuge, via procedimento de jurisdição voluntária, como dito acima, buscar o necessário suprimento judicial; mas, em caso de recusa, haverá indiscutível lide, de maneira que, diante da resistência operada, impõe-se seja efetivamente citado, a fim de que tolere os efeitos do provimento jurisdicional que pretendeu impedir com o seu comportamento recalcitrante. Muito bem. No que toca ao segundo questionamento (consequência da ausência da autorização conjugal), de repercussão mais profunda, a sua solução encontra-se logo no dispositivo seguinte, que merece transcrição: “Art. 1.649. A falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando necessária (art. 1.647), tornará anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação, até dois anos depois de terminada a sociedade conjugal. Parágrafo único. A aprovação torna válido o ato, desde que feita por instrumento público, ou particular, autenticado”. Pela dicção legal, a ausência da autorização do outro cônjuge para a prática dos atos capitulados no art. 1.647 resulta na sua anulabilidade, que poderá ser arguida no prazo decadencial de até dois anos após o fim da sociedade conjugal. Note-se que o após o biênio, contado a partir da extinção da sociedade conjugal, não poderá mais ser pleiteada a invalidade do ato praticado. Acrescente-se ainda a previsão de convalescimento do ato inválido, constante no parágrafo único do referido artigo, mediante a confirmação do outro cônjuge, por instrumento público ou particular, desde que devidamente autenticado. E no que tange à legitimidade para a propositura da ação anulatória, o art. 1.650 admite que, em caso de morte do cônjuge prejudicado, a demanda poderá ser proposta pelos seus herdeiros, supostamente prejudicados pela prática do ato. Finalmente, cumpre fazermos especial referência ao aval e à fiança prestados sem a autorização conjugal (inciso III). O enunciado 114 da I Jornada de Direito Civil sugere que, a despeito do que dispõe o art. 1.649, o aval não possa ser anulado por falta de vênia conjugal, pois apenas caracterizaria a “inoponibilidade do título ao cônjuge que não assentiu”. Vale dizer, se a minha esposa não anuiu no aval que eu prestei, o credor poderá executar a garantia, mas não poderá atingir o patrimônio dela, recaindo a execução apenas no meu. Trata-se de uma ideia interessante, mas que vai de encontro à norma legal, a qual, claramente, refere a invalidade do próprio ato (art. 1.649), o que resultaria na sua consequente e total ineficácia. Nessa mesma linha, no caso da fiança prestada sem a necessária autorização conjugal, o STJ, há pouco tempo, sumulou: “A fiança prestada sem autorização de um dos cônjuges implica a ineficácia total da garantia”. Por tudo isso, entendemos não ser fácil, no atual estágio do nosso Direito, reconhecer-se a ineficácia meramente parcial da garantia fidejussória (pessoal) prestada sem a autorização do outro cônjuge.
Gagliano, Pablo Stolze; Filho, Rodolfo Mario Veiga Pamplona. Novo Curso de Direito Civil - Direito de Família - Volume 6 - 11ª Edição 2021 (pp. 366-374). Saraiva Jur. Edição do Kindle.
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