"A família é socioafetiva, em princípio, por ser grupo social considerado base da sociedade e unido na convivência afetiva. A afetividade, como categoria jurídica, resulta da transeficácia de parte dos fatos psicossociais que a converte em fato jurídico, gerador de efeitos jurídicos. Todavia, no sentido estrito, a socioafetividade tem sido empregada no Brasil para significar as relações de parentesco não biológico, de parentalidade e filiação, notadamente quando em colisão com os vínculos de origem biológica.
A socioafetividade como categoria do direito de família tem sistematização recente no Brasil. Em grande medida resultou das investigações das transformações ocorridas no âmbito das relações de família, máxime das relações parentais, desde os anos 1970.
Entre os juristas, houve a instigação especial do impacto provocado pelo advento da Constituição de 1988, que revolucionou o tratamento fundamental dado aos integrantes das entidades familiares, superando o histórico quantum despótico que as caracterizava, afastando-se os últimos resíduos dos poderes domésticos, principalmente o poder marital e o pátrio poder. Os estudos jurídicos produzidos, desde então, passaram a salientar o papel determinante da socioafetividade na configuração do contemporâneo direito de família. Nossa primeira contribuição se deu com o capítulo intitulado Repersonalização das Relações Familiares (1989, p. 53-82), que contou com boa aprovação da doutrina especializada, seguida, anos depois, por trabalho dedicado especificamente ao princípio jurídico da afetividade (2000, p. 245-54).
A socioafetividade não é elaboração cerebrina ou mera racionalização lógica. É fruto de longo desenvolvimento da consideração do afeto e da afetividade no desenvolvimento das sociedades modernas e contemporâneas e das pessoas humanas, enquanto integrantes dos grupos familiares.
Há muito tempo, obras de antropologia, de outras ciências sociais e de psicanálise já tinham chamado a atenção para o fato de que é só após a passagem do homem da natureza para a cultura que se torna possível estruturar a família. Pode-se dizer que a evolução da família expressa a passagem do fato natural da consanguinidade para o fato cultural da afetividade, principalmente no mundo ocidental contemporâneo.
O afeto é um fato social e psicológico. Talvez por essa razão, e pela larga formação normativista dos profissionais do direito no Brasil, houvesse tanta resistência em considerá-lo a partir da perspectiva jurídica. Mas não é o afeto, enquanto fato anímico ou social, que interessa ao direito. Interessam, como seu objeto próprio de conhecimento, as relações sociais de natureza afetiva que engendram condutas suscetíveis de merecer a incidência de normas jurídicas e, consequentemente, deveres jurídicos. O afeto, em si, não pode ser obrigado juridicamente, mas sim as condutas que o direito impõe tomando-o como referência.
O termo socioafetividade conquistou as mentes dos juristas brasileiros, justamente porque propicia enlaçar o fenômeno social com o fenômeno normativo. De um lado há o fato social e de outro o fato jurídico, no qual o primeiro se converteu após a incidência da norma jurídica. A norma é o princípio jurídico da afetividade. As relações familiares e de parentesco são socioafetivas, porque congrega o fato social (socio) e a incidência do princípio normativo (afetividade).
A parentalidade socioafetiva consolidou-se na legislação, na doutrina e na jurisprudência brasileiras orientada pelos seguintes eixos:
1. Reconhecimento jurídico da filiação de origem não biológica (socioafetiva).
2. Igualdade de direitos dos filhos biológicos e socioafetivos.
3. Não prevalência a priori ou abstrata de uma filiação sobre outra, dependendo da situação concreta.
4. Impossibilidade de impugnação da parentalidade socioafetiva em razão de posterior conhecimento de vínculo biológico.
5. O conhecimento da origem biológica é direito da personalidade sem efeitos necessários de parentesco.
O despertar do interesse pela socioafetividade no direito de família, no Brasil, especialmente na filiação, deu-se, paradoxalmente, no mesmo tempo em que os juristas se sentiram atraídos pela perspectiva de certeza quase absoluta da origem biológica, assegurada pelos exames de DNA. Alguns ficaram tentados a resolver todas as dúvidas sobre filiação no laboratório. Porém, a complexidade da vida familiar é insuscetível de ser apreendida em um exame laboratorial. Pai, com todas as dimensões culturais, afetivas e jurídicas que o envolvem, não se confunde com genitor biológico; é mais que este.
A paternidade e a filiação socioafetiva são, fundamentalmente, jurídicas, independentemente da origem biológica. Pode-se afirmar que toda paternidade é necessariamente socioafetiva, podendo ter origem biológica ou não biológica; em outras palavras, a paternidade socioafetiva é gênero do qual são espécies a paternidade biológica e a paternidade não biológica. Tradicionalmente, a situação comum é a presunção legal de que a criança nascida biologicamente dos pais que vivem unidos em casamento adquire o status jurídico de filho. Paternidade biológica aí seria igual a paternidade socioafetiva. Mas há outras hipóteses de paternidade que não derivam do fato biológico, quando este é sobrepujado por valores que o direito considera predominantes.
Fazer coincidir a filiação necessariamente com a origem biológica é transformar aquela, de fato cultural e social em determinismo biológico, o que não contempla suas dimensões existenciais. A origem biológica era indispensável à família patriarcal e exclusivamente matrimonial, para cumprir suas funções tradicionais e para separar os filhos legítimos dos filhos ilegítimos. A família atual é tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e a responsabilidade.
A chamada verdade biológica nem sempre é adequada, pois a certeza absoluta da origem genética não é suficiente para fundamentar a filiação, especialmente quando esta já tiver sido constituída na convivência duradoura com pais socioafetivos (posse de estado) ou quando derivar da adoção. Os desenvolvimentos científicos, que tendem a um grau elevadíssimo de certeza da origem genética, pouco contribuem para clarear a relação entre pais e filho, pois a imputação da paternidade biológica não substitui a convivência, a construção permanente dos laços afetivos.
O problema da verdade real, que tem sido manejada de modo equivocado quando se trata de paternidade, é que não há uma única, mas três verdades reais: a) verdade biológica com fins de parentesco, para determinar paternidade – e as relações de parentesco decorrentes – quando esta não tiver sido constituída por outro modo e for inexistente no registro do nascimento, em virtude da incidência do princípio da paternidade responsável imputada a quem não a assumiu; b) verdade biológica sem fins de parentesco, quando já existir pai socioafetivo, para os fins de identidade genética, com natureza de direitos da personalidade, fora do direito de família; c) verdade socioafetiva, quando já constituído o estado de filiação e parentalidade, em virtude de adoção, ou de posse de estado de filiação, ou de inseminação artificial heteróloga.
O art. 232 do Código Civil estabelece que a recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá suprir a prova que se pretendia obter com o exame. Essa norma tem sido interpretada de modo literal e equivocado, como se o legislador brasileiro tivesse feito opção exclusiva para a verdade biológica, afastando a verdade socioafetiva. A presunção referida no artigo não é legal, mas judiciária, ou seja, depende da convicção do juiz, ante o conjunto probatório que se produziu. Se, por exemplo, o estado de filiação da paternidade estiver provado, a presunção resultante da recusa ao exame não prevalecerá. Já se disse (Didier Jr., 2006, p. 177) que esse artigo “não tem muita utilidade, pois, de nada adianta o legislador ‘regrar’ a presunção judicial, que é raciocínio do juiz”.
No estágio em que se encontram as relações familiares e o desenvolvimento científico, tende-se a encontrar a harmonização entre o direito de personalidade ao conhecimento da origem genética, sem implicação no parentesco, até como necessidade de concretização e prevenção do direito à saúde, e o direito à relação de parentesco, quando este já se estabeleceu, fundado no princípio jurídico da afetividade.
No sentido que vimos afirmando, o legislador brasileiro se encaminhou. A Lei n. 12.010/2009, ao dar nova redação ao art. 48 do ECA, passou a admitir, em relação ao adotado, “o direito de conhecer sua origem biológica”, mediante acesso aos dados contidos no processo de sua adoção, ao completar dezoito anos, ou, se menor, com assistência jurídica e psicológica. Esse direito não importa desfazimento da relação de parentesco, pois a adoção é inviolável. Mesmo na família tradicional, a filiação biológica era nitidamente recortada entre filhos legítimos e ilegítimos, a demonstrar que a origem genética nunca foi, rigorosamente, a essência das relações familiares. As pessoas que se unem em comunhão de afeto, não podendo ou não querendo ter filhos, constituem também família protegida pela Constituição.
A igualdade entre filhos biológicos e não biológicos implodiu o fundamento da filiação na origem genética. A concepção de família, a partir de um único pai ou de uma única mãe e seus filhos (entidade monoparental), eleva-a à mesma dignidade da família matrimonial. O que há de comum nessa concepção plural de família e filiação é sua fundação na afetividade. No Código Civil, identificamos as seguintes referências da clara opção pelo paradigma da filiação socioafetiva:
a) art. 1.593, para o qual o parentesco é natural ou civil, “conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. A principal relação de parentesco é a que se configura na paternidade (ou maternidade) e na filiação. A norma é inclusiva, pois não atribui a primazia à origem biológica; a paternidade de qualquer origem é dotada de igual dignidade;
b) art. 1.596, que reproduz a regra constitucional de igualdade dos filhos, havidos ou não da relação de casamento (estes, os antigos legítimos), ou por adoção, com os mesmos direitos e qualificações. O § 6º do art. 227 da Constituição revolucionou o conceito de filiação e inaugurou o paradigma aberto e inclusivo;
c) art. 1.597, V, que admite a filiação mediante inseminação artificial heteróloga, ou seja, com utilização de sêmen de outro homem, desde que tenha havido prévia autorização do marido da mãe. A origem do filho, em relação aos pais, é parcialmente biológica, pois o pai é exclusivamente socioafetivo, jamais podendo ser contraditada por investigação de paternidade ulterior;
d) art. 1.605, consagrador da posse do estado de filiação, quando houver começo de prova proveniente dos pais, ou, “quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos”. As possibilidades abertas com esta segunda hipótese são amplas. As presunções “veementes” são verificadas em cada caso, dispensando-se outras provas da situação de fato;
e) art. 1.614, continente de duas normas, ambas demonstrando que o reconhecimento do estado de filiação não é imposição da natureza ou de exame de laboratório, pois admitem a liberdade de acolhê-lo ou rejeitá-lo. A primeira norma faz depender a eficácia do reconhecimento ao consentimento do filho maior; se não consentir, a paternidade, ainda que biológica, não será admitida; a segunda norma faculta ao filho menor impugnar o reconhecimento da paternidade até quatro anos após adquirir a maioridade.
O STF tem decidido que há causa obstativa da expulsão de estrangeiro, quando houver a constituição de paternidade socioafetiva e não exclusivamente exclusivamente biológica. Como se lê no HC 114.901, o afeto é tido “como valor constitucional irradiador de efeitos jurídicos” e como novo paradigma do “núcleo conformador do conceito de família”.
O STJ orientou-se, firmemente, em diversas decisões, pela primazia da paternidade socioafetiva, precisando o espaço destinado à origem genética, o que coloca o Tribunal na vanguarda da jurisprudência mundial, nessa matéria. O STJ foi sistematizando os requisitos para a primazia da socioafetividade nas relações De família, notadamente na filiação, em situações em que a origem genética era posta como fundamento para desconstituir paternidades ou maternidades já consolidadas, podendo ser indicadas as seguintes decisões, proferidas no ano de 2009: REsp 932.692, REsp 1.067.438, REsp 1.088.157. Em 2011, no REsp 1.000.356, confirmou-se a irrevogabilidade do reconhecimento voluntário da maternidade socioafetiva, ainda que procedida em descompasso com a verdade biológica. Em 2012 (REsp 1.059.214), afirmou o Tribunal a sedimentação do entendimento de que “a pretensão voltada à impugnação da paternidade não pode prosperar, quando fundada apenas na origem genética, mas em aberto conflito com a paternidade socioafetiva”.
Nesses casos, subjaz o interesse eminentemente patrimonial dos interessados, máxime em relação à sucessão hereditária dos pretendidos genitores biológicos, a expensas das histórias de vida das pessoas envolvidas e dos estados de filiação consolidados no tempo. Quando ainda não se falava em socioafetividade, o STF, em 1970, já tinha consagrado “a interpretação de que interessados na herança não podem impugnar o registro civil de nascimento de filho do de cujus, declarado e assinado livremente por este e sua esposa, tanto mais quanto a esta reafirma a autenticidade do ato” (RTJ 53/131, relator Min. Aliomar Baleeiro).
Em 22-9-2016, o STF fixou tese de repercussão geral (Tema 622, RE 898.060) com o seguinte enunciado: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com efeitos jurídicos próprios”. Resulta dessa decisão, de aplicação geral pelos tribunais: a) o reconhecimento jurídico da parentalidade socioafetiva (abrangente tanto da paternidade quanto da maternidade); b) a impossibilidade de impugnação da paternidade ou maternidade socioafetivas que tenha por fundamento a origem biológica de reconhecimento superveniente; c) a possibilidade de conhecimento da origem biológica, tanto para fins de direito da personalidade quanto para os efeitos de parentesco biológico concorrente com o parentesco socioafetivo; d) a possiblidade de multiparentalidade, máxime na situação paradigma que serviu de base para a fixação da tese (RE 898.060): a mãe, o pai socioafetivo e o pai biológico; e) aplicabilidade exclusiva à parentalidade socioafetiva em sentido estrito, ou seja, posse de estado de filiação.
A decisão do STF implica compartilhamento, por ambos os pais (ou mães), dos direitos e deveres existenciais (ex.: poder familiar e guarda compartilhada) e patrimoniais (ex.: alimentos e sucessão), orientando-se a resolução de eventuais conflitos pelo princípio do melhor interesse da criança ou adolescente. A admissão pelo STF da dupla parentalidade ou multiparentalidade foi surpreendente ante seu alcance alargado, pois a doutrina da parentalidade socioafetiva tinha por fito principal seu reconhecimento jurídico, que não poderia ser desafiado por investigação de paternidade (ou maternidade) cumulada com o cancelamento do registro civil, com fundamento exclusivamente na origem biológica, além da igualdade jurídica de ambas as parentalidades, sem prevalência a priori."
LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias: Vol. 5. Editora Saraiva. Edição do Kindle sem numeração de páginas. Capítulo 1.5 do livro, na íntegra.
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