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Blog de um advogado especializado em família

"Muitas vezes há dúvidas na interpretação das cláusulas testamentárias, em virtude de dubiedade, falta de clareza e obscuridade na manifestação da vontade do testador. Para alcançar o sentido e o alcance das disposições do testamento, o Código Civil estabelece, em seu artigo 1.899, que, quando a cláusula testamentária for suscetível de interpretações diferentes, prevalecerá a que melhor assegure a observância da vontade do testador.


[Teoria da vontade pura]

Na tradição da doutrina brasileira, prevalece o entendimento de que o dispositivo em referência consagra a aplicação da teoria da vontade pura aos testamentos. Isso porque, em virtude da manifestação única e pessoal do testador, que deve ser livre de qualquer influência, a partir de um negócio jurídico unilateral, em que não há declarações receptícias de vontade, que só produzirá efeitos após a morte do seu agente, estaria justificada ater a interpretação do ato à real vontade do autor da herança.


Com efeito, argumenta-se que, em virtude dos caracteres do testamento (negócio unilateral, gratuito, causa mortis, personalíssimo, solene e revogável), particularmente em razão de sua natureza causa mortis e de sua gratuidade, sua interpretação apresenta peculiaridades em relação à hermenêutica dos negócios inter vivos, especialmente dos contratos. Se nos negócios entre vivos o destinatário da manifestação da vontade só é cobrado a saber aquilo que lhe é revelado e é tornado público e claro a partir da declaração volitiva e da conduta do declarante; se, ainda, nesses negócios o ônus de dar à vontade uma expressão adequada é imposto para a tutela do destinatário da declaração e o seu eventual inadimplemento incidirá no plano da interpretação em desfavor do declarante, nos negócios mortis causa, ao contrário, análoga exigência de tutela não existiria, pois, na constituição dos atos de última vontade faltam outros interessados e, em consequência, falta conflito de interesses a ser composto entre declarante e destinatários da manifestação volitiva.


[Críticas à teoria da vontade]

Ocorre que, apesar de o testamento não contar com declarações receptícias de vontade, não se pode perder de vista que as disposições testamentárias repercutirão na esfera de terceiros e, assim, é preciso ponderar se, realmente, a interpretação de cláusulas dúbias deve sempre ser direcionada para uma busca do que seria a real vontade do testador. Por esta razão, a defesa da aplicação da teoria da vontade pura na interpretação dos testamentos encontra críticos, em especial na doutrina estrangeira, em virtude dos evidentes conflitos que podem surgir entre a vontade do de cujus e aquela dos destinatários da declaração.


Antunes Varella apresenta a seguinte indagação: “Ora, por que razão, ocorre perguntar, repugna menos ao direito a vinculação do declarante (nós negócios entre vivos) em termos divergentes da vontade real, a pretexto de que se torna necessário salvaguardar as expectativas criadas pela declaração junto do declaratário, do que a mera repartição da herança em termos que se não ajustam inteiramente à vontade real do de cuiús, mas correspondem às justas expectativas que a declaração testamentária fez igualmente medrar no espírito do real ou aparente chamado?”. Ainda diante da doutrina lusitana, Maria de Nazareth Lobato Guimarães pondera que a interpretação e a integração do testamento devem ser mais objetivas, atentando para o que é depreendido das disposições testamentárias.


No Direito Italiano, em que não há uma regra semelhante àquela do artigo 1.899 do Código Civil, os autores discutem a possibilidade de se aplicar ao testamento as regras de interpretação previstas para os contratos, debatendo a incidência do artigo 1.366 do Codice Civile aos atos de última vontade. O referido dispositivo legal determina que o contrato deve ser interpretado segundo a boa-fé. Fabrizio Panza anuncia que há algumas divergências quanto à solução da questão, tendo em vista ser o negócio testamentário um ato unilateral, em que não há declarações receptícias de vontade. O autor propõe a seguinte leitura para o conflito interpretativo: “a última vontade do de cujus deve ser considerada pelo significado que assume objetivamente na realidade social, em conformidade com o critério da razoável confiança criada nos possíveis destinatários daquela, à semelhança do que ocorre em qualquer outro negócio entre vivos”25.


[Vontade declarada do testador]

Verifica-se, assim, proposta de objetivação da interpretação dos testamentos, que se coaduna com o sistema brasileiro a partir da conjugação do citado artigo 1.899 do Código Civil com os artigos 112 e 113 do mesmo diploma legal. Assim, na hermenêutica dos negócios testamentários deve-se alcançar o sentido da vontade declarada do testador, a partir do conjunto das cláusulas testamentárias e demais circunstâncias que permearam a elaboração do ato.


Nessa busca, o intérprete deve ter em mente todas as circunstâncias fáticas, finalísticas, históricas e sistemáticas da lavratura do ato, levando em conta o vocabulário pessoal do disponente, seu modo peculiar de falar e empregar as palavras, considerando seu significado no local, no ambiente e na época em que vivia o autor da herança. Fatos notórios e evidentes devem ser considerados na interpretação. Se, por exemplo, o testador dispõe de seu apartamento em favor de sua sobrinha Marta e quando ocorre o óbito o testador tem duas sobrinhas de nome Marta, mas uma delas nasceu depois da lavratura do ato de última vontade, certamente o testador pretendeu beneficiar aquela sobrinha que existia no momento da elaboração da cédula.


Em regra, a interpretação deve estar adstrita aos subsídios oferecidos pelo próprio testamento, sendo admitido, no entanto, que sejam utilizados meios externos para a interpretação como cartas, diários, gravações, contratos e demais documentos. Sobre a questão, vale citar julgado do Superior Tribunal de Justiça, que por maioria de votos (3 a 2), confirmou decisão da Justiça paranaense, que considerou a expressão “filhos legítimos”, utilizada pelo testador em 1975, falecido em 1976, como abrangente de todos os filhos, quer nascidos de relação oriunda de casamento, quer daquela decorrente de concubinato, assim ementada: “Sucessão. Testamento. Fideicomisso. Interpretação de cláusula testamentária. Sentença que deu pela procedência do pedido, para declarar inexistente o direito dos requeridos de participarem, em partes iguais, juntamente com o autor, da partilha dos bens deixados pelo testador “aos filhos legítimos” do fiduciário. Apelação. Preliminar. Coisa Julgada. Inocorrência. Mérito. Disposição de última vontade que beneficiou indistintamente todos os filhos sanguíneos do fiduciário, inclusive os que viessem a nascer, pouco importando serem frutos de casamento ou de concubinato. Pedido improcedente. Sentença reformada. Recurso provido”. De fato, a expressão “legítimos” pode ser utilizada em sua acepção jurídica daquela época, como filhos nascidos de uma relação de casamento, como também no sentido de verdadeiro ou genuíno, justificando a dúvida na interpretação do ato de última vontade e, assim, a decisão final do Tribunal, que concluiu que todos os filhos do fiduciário estavam contemplados na disposição testamentária.


O Ministro Ruy Rosado de Aguiar, ao acompanhar os votos vencedores, o fez por fundamento diverso. Segundo o Ministro, não seria preciso ter preocupação com a vontade do testador para interpretar e aplicar o seu testamento. Isso porque, no sistema constitucional vigente, não há mais a distinção entre filho legítimo e ilegítimo e a força constitucional também atua sobre a vontade da parte, de forma que a distinção feita pelo testador hoje não prevalece. Não porque se deva interpretar o testamento de um modo ou de outro, mas porque a Constituição não faz a distinção, tornando-a ilícita.


Pode-se dizer que no caso em exame prevaleceu interpretação atenta à repercussão da disposição testamentária na esfera dos destinatários da declaração, porque ao certo, uma vez falecido o fiduciário já na vigência do sistema constitucional de 1988, em que pese se tratar de hipótese de transmissão hereditária pelo fideicomitente falecido em 1976, todos os filhos do primeiro esperavam receber parte do patrimônio independentemente da origem da filiação. Dessa forma, a solução adotada primou pela igualdade entre os filhos, ainda que se tenha perquirido a vontade do testador quando se valeu da expressão “legítimos”.


[Funcionalização das disposições testamentárias aos valores constitucionais]

O fato de a interpretação do negócio testamentário atender à vontade declarada do testador não exclui a funcionalização das disposições testamentárias aos valores constitucionais. Se tal fato ocorresse, haveria uma subversão do sistema, pois, a norma relativa à interpretação do testamento do Código Civil estaria sendo aplicada de forma isolada e em situação de primazia diante dos valores e princípios propugnados pela Constituição da República. A autonomia testamentária deve realizar interesses positivos e merecedores de tutela segundo a tábua axiológica constitucional. Se assim não for, a cláusula testamentária não produzirá efeitos."


Fonte: Tepedino, Gustavo; Nevares, Ana Luiza Maia; Meireles, Rose Melo Vencelau. Fundamentos do Direito Civil (pp. 244-249). Forense. Edição do Kindle.


"O testamento também é sede profícua para que o testador estabeleça disposições relativas à sua prole, a partir do reconhecimento voluntário de um filho, da nomeação de um tutor, bem como da autorização para realização de procedimento de reprodução assistida post mortem. A eficácia de tais disposições dependerá de suas consequências para o respectivo destinatário, tendo em vista a avaliação de aspectos inerentes à sua personalidade, que poderão ser proeminentes no caso concreto.


A paternidade reconhecida no testamento tanto pode ser a biológica como a socioafetiva. De fato, o Provimento 63 do CNJ admite expressamente que a paternidade ou maternidade socioafetiva seja reconhecida por meio de documento público ou particular de disposição de última vontade, observando-se os trâmites previstos no aludido diploma legal. Importante registrar que apesar de o testamento ser ato essencialmente revogável, o reconhecimento de filho manifestado no ato de última vontade não o é (CC, art. 1.610). O reconhecimento voluntário de filho é ato unilateral. No entanto, para que produza os seus efeitos, deve ser considerada a vontade do reconhecido, se maior, sendo certo que, se menor, poderá impugnar o ato nos quatro anos que se seguirem à maioridade ou emancipação, conforme o disposto no artigo 1.614 do Código Civil. Desse modo, “o consentimento se aproxima mais da eficácia e menos da validade, e por isso mesmo é imprescindível o consentimento para que o ato surta seus efeitos”.


Se o filho não tiver pai registral, a retificação de seu registro civil ocorrerá a partir da inclusão do nome do testador no registro. A questão poderá ensejar discussões nas hipóteses nas quais o filho tem um pai registral, que poderia se opor ao reconhecimento manifestado pelo testamento e ao consentimento do filho quanto à paternidade manifestada no ato de última vontade. A angústia diante dos interesses em conflito seria acentuada na hipótese em que o vínculo socioafetivo do filho também fosse identificado com o pai registral. Para solucionar a problemática, muito embora sejam reconhecidas as divergências existentes na matéria e a sua complexidade, há de levar em conta o interesse do maior interessado no estabelecimento da filiação: sendo o estado de filiação estritamente pessoal, cabe ao filho buscar a própria verdade. O equilíbrio, então, entre o biológico e o socioafetivo é alcançado pela satisfação do interesse daquele de cujo estado se trata.


Uma solução para a questão pode ser a multiparentalidade, admitida em nosso ordenamento jurídico em tese de repercussão geral aprovada pelo Supremo Tribunal Federal, nº 622, assim ementada, in verbis, “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.


Debates podem surgir diante de ações de investigação de paternidade movidas pelo mero interesse patrimonial. Isso porque o artigo 1.609 do Código Civil, na esteira do artigo 26, parágrafo único, do ECA, proíbe que haja o reconhecimento de um filho falecido sem descendência, justamente para evitar que dito ato tenha finalidade exclusivamente sucessória, já que o perfilhante passaria a ser sucessor pela ordem de vocação hereditária. Assim, há autores que defendem a aplicação por analogia do referido artigo 1.609 do Código Civil, quando o filho pretende o reconhecimento movido apenas pela busca da herança, restando provado que já tem ou teve um pai socioafetivo. De outra parte, há quem defenda a prevalência do interesse do filho a ter seu estado vinculado ao pai biológico ou socioafetivo, independentemente do motivo existencial ou patrimonial.


Quanto à reprodução humana assistida post mortem, esta é admitida pelo Conselho Federal de Medicina, desde que haja autorização prévia específica da pessoa falecida para utilização de seu material genético criopreservado, podendo o testamento ser o veículo para a expressão de tal autorização, diante de sua eficácia múltipla. Apesar de não ser o testamento o instrumento exclusivo para tanto, é inegável a sua vantagem, pois o ato de última vontade conta com a formalidade e publicidade, a partir de seu processo de abertura, registro e cumprimento.


O genitor, portanto, através de seu ato de última vontade, poderá estabelecer, inclusive, as condições em relação às quais deseja que sejam utilizadas as técnicas de reprodução assistida post mortem, desde que estas não contrariem as normas deontológicas médicas, como a impossibilidade de se selecionar o sexo ou qualquer outra característica biológica do filho, exceto quando se trate de evitar doenças ligadas ao sexo. Desse modo, o genitor poderá estipular um prazo para que seja utilizado o material congelado, bem como estabelecer que a reprodução assistida post mortem estará vedada se ele tiver gerado um filho em vida, dentre outras. Tais condições, uma vez em consonância com os valores constitucionais, deverão ser respeitadas, por dizerem respeito a aspecto inerente à dignidade do testador, em relação ao qual deve prevalecer sua liberdade."


Fonte: Tepedino, Gustavo; Nevares, Ana Luiza Maia; Meireles, Rose Melo Vencelau. Fundamentos do Direito Civil (p. 311-313). Forense. Edição do Kindle.

"O testamento não é apenas negócio de atribuição de bens, sendo um ato de eficácia múltipla, já que serve a diversos objetivos do testador. Dentre eles, encontram-se interesses de natureza existencial do autor da herança.


Há dificuldades para se enquadrar as situações jurídicas existenciais no fenômeno sucessório, predominantemente assentado no princípio da patrimonialidade, na medida em que são as situações jurídicas patrimoniais aquelas que são passíveis de transmissão por morte. Apesar disso, diante do vasto conteúdo do testamento, é preciso dar especial atenção às disposições testamentárias que dizem respeito à esfera pessoal e existencial do testador, sendo certo que estas são heterogêneas e de conteúdos variados. Por essa razão, não é possível uniformizar a sua disciplina. Afinal, as expressões da autonomia privada têm fundamentos diversificados, na medida em que repercutem na esfera patrimonial ou existencial do agente, encontrando o “denominador comum na necessidade de serem dirigidos à realização de interesses e de funções que merecem tutela e que são socialmente úteis”.


[Direitos da personalidade]

Apesar de o testamento não ser o único documento hábil para a manifestação de vontade post mortem quanto a aspectos decorrentes da personalidade do agente, este é sede profícua para tanto, podendo o testador determinar diretrizes quanto ao exercício e defesa dos atributos de sua personalidade, estabelecendo, por exemplo, orientações quanto à publicação de obras inéditas, quanto à utilização de seu nome, imagem e voz em programas ou propagandas, dentre outras. A Lei nº 9.610/98 bem exemplifica a verificação da vontade da pessoa quanto a aspectos inerentes à sua personalidade com eficácia post mortem, ao determinar, expressamente, em seu artigo 55, parágrafo único, o respeito da vontade do autor em caso de falecimento antes de concluir a obra, vedando a publicação parcial quando assim tiver sido a vontade manifestada pelo autor.


[Ponderações dos interesses diante de disposições testamentárias de cunho existencial]

No entanto, tendo em vista que qualquer manifestação da autonomia privada está submetida ao juízo de licitude e de merecimento de tutela, o testador poderá encontrar alguns limites, também deduzidos a partir da ponderação dos interesses em questão. Ilustre-se com o direito à imagem; ainda que haja determinação expressa do testador proibindo a veiculação de sua imagem, esta poderá ser divulgada sempre queindispensável à afirmação de outro direito fundamental que deva preponderar no caso concreto, como o direito de informação."


Fonte: Tepedino, Gustavo; Nevares, Ana Luiza Maia; Meireles, Rose Melo Vencelau. Fundamentos do Direito Civil (p. 308-311). Forense. Edição do Kindle.


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