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Blog de um advogado especializado em família


"Nos últimos tempos, houve uma fundamental mudança na conceituação de pai e de filho. Não basta o fato fisiológico da fecundação para definir a filiação. Há valores de ordem espiritual que passaram a ter maior relevância; aliás, tanta relevância que se sobrepõem à filiação natural e biológica. Passou a ter uma nova conceituação o estado de filho, adquirindo preponderância o fato da criação do filho.


Com o advento da Carta Constitucional de 1988, iniciou a dominar, segundo seu art. 227, que pai é aquele que assumiu todos os deveres/obrigações oriundos da paternidade, tornando-se o mais puro elemento exigido para a configuração da ‘relação de parentesco’, conforme se denota do caput do referido artigo. Passou a ter força nos fóruns e tribunais o brocado popular ‘pai é aquele que cria’. Estatui o § 6º do citado art. 227: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.


Relativamente a quem cria, convive, educa e forma um ser humano desde o nascimento, o estado de filiação que adquiriu predomínio é o estado de filiação socioafetiva. Negar que atualmente as relações baseadas no afeto e na criação são menos importantes do que as consanguíneas constitui um erro. A filiação biológica não está mais em pé de superioridade, uma vez que a criação do filho afetivo surge por circunstâncias alheias à imposição legal/natural que a paternidade impõe, adquirindo relevância superior o empunhar de bandeiras mais nobres, hasteadas sobre o pedestal do amor, da dedicação, da real afetividade.


Várias as manifestações da doutrina sobre a matéria, preponderando o reconhecimento da paternidade na pessoa de quem cria e convive com o adotando. Assim, exemplificativamente, Dalvan Charbaje Colen:


“Encontram-se na Constituição brasileira vários fundamentos do estado de filiação geral, que não se resume à filiação biológica:


a) todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem (art. 227, § 6º);

b) a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e 6º);

c) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, § 4º); não é relevante a origem ou existência de outro pai (genitor);

d) o direito à convivência familiar, e não a origem genética, constitui prioridade absoluta da criança e do adolescente (art. 227, caput).


Portanto, toda vez que um estado de filiação estiver constituído na convivência familiar duradoura, com a decorrente paternidade socioafetiva consolidada, esta não poderá ser impugnada nem contraditada. A investigação de paternidade só é cabível quando não houver paternidade, nunca para desfazê-la. É incabível o fundamento da investigação da paternidade biológica, para contraditar a paternidade socioafetiva já existente, no princípio da dignidade da pessoa humana, pois este é uma construção cultural e não um dado da natureza. Aliás, a contradição é evidente quando se maneja o princípio da dignidade humana com intuito de assegurar a uma pessoa o direito à herança deixada pelo pretenso genitor, pois como disse Immanuel Kant, em 'Fundamentação da metafísica dos costumes', a dignidade é tudo aquilo que não tem preço”.


Adiante, sobre a inviabilidade da pretensão à filiação biológica com fins patrimoniais, se existente a paternidade socioafetiva:


“Profunda mudança de paradigma da paternidade, no direito brasileiro, significou centralizar a atenção na realização existencial das pessoas envolvidas (pai e filho) e na afirmação de suas dignidades; em uma palavra, na repersonalização. Os interesses patrimoniais, que antes determinavam as soluções jurídicas nas relações de família, implícita ou explicitamente, perderam o protagonismo que detinham, assumindo posição de coadjuvantes dos interesses pessoais. Assim, não podem os interesses patrimoniais ser móveis de investigações de paternidade, como ocorre quando o pretendido genitor biológico falece, deixando herança considerável. Repita-se: a investigação de paternidade tem por objeto assegurar o pai a quem não tem e nunca para substituir a paternidade socioafetiva pela biológica, até porque esta só se impõe se corresponder àquela”.


Trata-se do vínculo que decorre da relação socioafetiva constatada entre filhos e pais, tendo como fundamento o afeto, o sentimento existente entre eles: melhor pai ou mãe nem sempre é aquele que biologicamente ocupa tal lugar, mas a pessoa que exerce dita função, substituindo o vínculo biológico pelo afetivo.


Se o sistema jurídico consagrou a filiação socioafetiva, ela existe como instituto jurídico, como uma realidade em si, soberana e efetiva, descabendo a sua desconstituição porque não traz efeitos patrimoniais. Ela existe tanto quanto a filiação biológica.


Os precedentes históricos para a configuração da filiação socioafetiva nos trazem o brocado pater is est quem nuptiae demonstrant, oriunda do direito romano, onde o pai poderia aceitar ou repudiar o filho, configurando, desta feita, toda a situação de poder exercida pelo pai sobre a família. Por outras palavras, contrai núpcias quem as demonstra na prática. É pai quem revela o estado com atos concretos, e não porque gerou. Esse estado de filiação possui caracteres de cunho interno e externo. O primeiro se dá com os traços de indivisibilidade, indisponibilidade (pois diz respeito à personalidade) e imprescritibilidade (não se perde pelo não exercício), ao passo que o cunho externo se dá nos moldes de pessoalidade, generalidade e revestido de ordem pública.


Na verdade, o estado de filiação é uno e indivisível, pelo fato de uma mesma pessoa não poder adquirir, ao mesmo tempo, vários status de uma mesma categoria. Vem a ser uma ficção/criação jurídica, a qual tem o escopo de proteger o núcleo familiar, na medida em que se presume ser filho aquele que assim se mostra para a sociedade, ainda que não possua laço de sangue com a outra pessoa.


Atualmente, é o afeto que traça e cria os laços familiares, sendo este semeado e acalentado com o dia a dia. Desta feita, temos que a posse do estado de filho é um requisito essencial à caracterização da paternidade/filiação socioafetiva, traduzida na aparência/demonstração de um estado de filho.


A verdade sociológica da filiação se constrói, revelando-se não apenas na descendência, mas no comportamento de quem expende cuidados, carinho e tratamento, quer em público, quer na intimidade do lar, com afeto verdadeiramente paternal, construindo vínculo que extrapola o laço biológico, compondo a base da paternidade.


Assim, tem-se que a posse do estado de filho se configura sempre que alguém age como se fosse o filho e outrem como se fosse o pai, pouco importando a existência de laço biológico entre eles. É a confirmação do parentesco/filiação socioafetiva, pois não há nada mais significativo do que ser tratado como filho no seio do núcleo familiar e ser reconhecido como tal pela sociedade, o mesmo acontecendo com aquele que exerce a função de pai.


Trata-se essa construção da materialização do que está consagrado no art. 1.593 do Código Civil: “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. Plenamente admitido, portanto, o parentesco civil, reconhecido não apenas por se encontrar lançado no Registro Público, mas, sobretudo, porque reconhecido de fato em face da relação que se desenvolveu, ao longo da vida, de um tratamento constante e efetivo de pai para filho e vice-versa.


Nas Jornadas de Direito Civil, promovidas pelo Conselho da Justiça Federal, houve também uma importante elucidação da matéria. Na I Jornada de Direito Civil, foi aprovado o Enunciado nº 103, o qual possui a seguinte redação:


“Art. 1.593: o Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho”.


No mesmo evento, foi aprovado também o texto do Enunciado nº 108, estabelecendo que: “Art. 1.603: no fato jurídico do nascimento, mencionado no art. 1.603, compreende-se, à luz do disposto no art. 1.593, a filiação consanguínea e também a socioafetiva”.


Nesse contexto, o Enunciado mais importante foi aquele aprovado sob o nº. 256, da III Jornada de Direito Civil, tendo o seguinte texto:


“Art. 1.593: A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil”.


O STJ igualmente já consolidou entendimento no reconhecimento do vínculo socioafetivo, em caso onde se discutia adoção à brasileira:


“Em se tratando de adoção à brasileira, a melhor solução consiste em só permitir que o pai-adotante busque a nulidade do registro de nascimento, quando ainda não tiver sido constituído o vínculo de socioafetividade com o adotado”.


Há algum tempo, a Suprema Corte reconheceu repercussão geral sobre um caso em que se discutia a prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica.


O Ministro Relator Luiz Fux alegou ser relevante, sob os pontos de vista econômico, jurídico e social, levar a matéria para discussão naquela Corte (ARE 692186). O mesmo Luiz Edson Fachin, agora como doutrinador, entende que “se o liame biológico que liga um pai a um filho é um dado, a paternidade pode exigir mais do que apenas laços de sangue. Afirma-se aí a paternidade socioafetiva que se capta juridicamente na expressão de posse de estado de filho”.


A 8ª Câmara Cível do Tribunal TJ/RS firmou posição favorável a essa linha, como se vê pelo seguinte julgado:


“Apelação. Investigação de paternidade cumulada com anulação de registro. Prevalência da paternidade socioafetiva. Embora filho biológico do investigado, o investigante foi criado pelo pai registral por mais de 30 anos, criando verdadeira paternidade socioafetiva, que prevalece sobre o vínculo genético. Negaram provimento”.


No teor do voto, destaca-se esta passagem:


“(...) A relação de paternidade e filiação pode decorrer dos liames genético, registral, social e afetivo. O ideal é que estes vínculos coincidam. Quando não coincidirem e sobrevier conflito entre as pessoas que mantém vínculo biológico e registral, o vínculo que prevalecerá será sempre aquele que estiver agregado ao liame socioafetivo. Como lembra Jaqueline Nogueira (in ‘A filiação que se constrói: o reconhecimento do afeto como valor jurídico’, pág. 85), ‘o vínculo de sangue tem um papel definitivamente secundário para a determinação da paternidade; a era da veneração biológica cede espaço a um novo valor que se agiganta: o afeto, porque o relacionamento mais profundo entre pais e filhos transcende os limites biológicos, ele se faz no olhar amoroso, no pegá-lo nos braços, em afagá-lo, em protegê-lo e este é um vínculo que se cria e não que se determina”.


Em outra decisão da mesma Colenda Câmara:


“(...) Paternidade socioafetiva. Plenamente caracterizada a paternidade socioafetiva entre o autor e o pai registral, ela prevalece sobre a verdade biológica, o que impede não só a anulação do registro de nascimento bem como a investigação da paternidade biológica. Preliminar rejeitada, por maioria. Apelação provida para julgar improcedentes ambas as ações”.


A filiação socioafetiva deve prevalecer se ficar demonstrada a posse de estado de filho, tendo em vista a impossibilidade de desconstituição do vínculo proveniente da convivência. Daí não se admitir a alteração da paternidade constante do registro civil, segundo proclama o seguinte aresto:


“Apelação cível. Família. Ação anulatória de reconhecimento de paternidade impropriamente denominada negatória de paternidade. Ausência de erro ou qualquer outro vício de consentimento capaz de macular o ato na origem. Pedido possível juridicamente, mas improcedente no mérito. O pedido do autor desta ação é possível, pois todos podem pedir a nulidade de um registro de nascimento, em decorrência da sua falsidade ou vício de consentimento. Contudo, apesar do pedido ser possível juridicamente, e apesar de o autor cumprir com as condições para entrar com a ação, adentrando-se no mérito da causa, vê-se que o registro não é nulo. O registro é válido, pois representa uma verdade, qual seja, o autor apesar de não ser pai biológico da ré, é pai socioafetivo. Por isso, em que pese a viabilidade de o autor poder entrar com a ação, indo ao mérito do pleito, tem-se que o registro não é falso, porque representa uma verdade (verdade socioafetiva). Consequentemente, o pedido é improcedente e, ao recurso, nega-se provimento, sem alterar de ofício o julgamento do processo, ressalvado o voto do Relator. Por maioria, negaram provimento vencido o Des. relator, que de ofício julgava extinto, sem apreciação do mérito”."


Fonte: Rizzardo, Arnaldo. Direito de Família (p. 441-444). Forense. Edição do Kindle.


A solução no seu caso concreto pode ser diferente. Contrate uma consulta com o Dr. Paulo Ladeira, advogado especialista em direito da família com atuação em São Paulo e São José dos Campos, para esclarecer detalhes ou divergências nos entendimentos dos magistrados.


"Muito se tem falado, nos últimos tempos, sobre a chamada adoção à brasileira, ou socioafetiva, que é a aquela em que se assume a paternidade ou a maternidade sem o devido processo legal, resultando a mesma do reconhecimento de um estado de fato existente há certo período de tempo. Transparece sobretudo o reconhecimento espontâneo da paternidade (que é mais comum relativamente à assunção da maternidade) daquele que, mesmo sabendo não ser o pai biológico, registra como seu o filho de outrem. Indo mais longe, também se admite a paternidade em razão do desconhecimento da paternidade biológica, desde que se tenha exercido uma manifestação de vontade, através do encaminhamento do ato do registro, com a declaração expressa da paternidade. Em verdade, embora desconhecendo que outra pessoa seja o pai, mas verificando-se, no curso dos anos, no tratamento dispensado uma relação de pai para filho, tipifica-se uma verdadeira adoção, que se torna irrevogável, a ponto de não se admitir, posteriormente, a pretensão de anular o registro de nascimento. Tem valor, para a pessoa humana, passando a adquirir feição jurídica, uma situação de fato revelada numa verdadeira relação de pai para filho. Por questões de herança, não se acolhe, após a morte da pessoa que aparece como pai, o pedido de outros filhos e mesmo do cônjuge supérstite de declaração de falsa paternidade.


Especialmente se aquele que consta como pai tem pleno conhecimento das circunstâncias que gravitam em torno de seu gesto e, ainda assim, não providenciou alterar o ato quando da ciência, não se lhe permite, mais tarde, por arrependimento, valer-se de eventual ação anulatória, postulando desconstituir o registro.


Acontece que se dá mais consideração à pessoa humana, já que a conduta do reconhecimento no correr do tempo gera efeitos decisivos na vida da criança de fato adotada, operando-se a formação da paternidade socioafetiva.


Esse tipo de adoção, no rigor formalístico da lei, é considerado crime, definido no artigo 242 do Código Penal, e ocorre quando alguém, sem observar o regular procedimento de adoção imposto pela Lei Civil, registra a criança como filha. No entanto, interessa ao direito a pessoa humana daquele que teve um pai, em uma realidade que se perpetuou através dos anos.


Acontece que não há como desfazer um ato levado a efeito com perfeita demonstração da vontade daquele ou daquela que, um dia, declarou perante a sociedade ser pai ou mãe da criança, valendo-se da verdade socialmente construída com base no afeto. Restou consumada, através do tempo, a relação de filiação que se criou e consolidou.


Adquiriu foros de dogma esse entendimento no STJ:


“O reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo socioafetivo entre pais e filhos. A ausência de vínculo biológico é fato que por si só não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento. A relação socioafetiva é fato que não pode ser, e não é, desconhecido pelo Direito. Inexistência de nulidade do assento lançado em registro civil. O STJ vem dando prioridade ao critério biológico para o reconhecimento da filiação naquelas circunstâncias em que há dissenso familiar, em que a relação socioafetiva desapareceu ou nunca existiu. Não se pode impor os deveres de cuidado, de carinho e de sustento a alguém que, não sendo o pai biológico, também não deseja ser pai socioafetivo. A contrario sensu, se o afeto persiste de forma que pais e filhos constroem uma relação de mútuo auxílio, respeito e amparo, é acertado desconsiderar o vínculo meramente sanguíneo, para reconhecer a existência de filiação jurídica. Da mesma forma se posicionou a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça ao julgar o recurso especial nº 1.088.157/PB: ‘Ora, se nem mesmo aquele que procedeu ao registro, tomando como sua filha que sabidamente não é, teve a iniciativa de anulá-lo, não se pode admitir que um terceiro (a viúva) assim o faça. Ademais, a própria concepção da adoção à brasileira traz consigo a ideia de que o sujeito tinha conhecimento de que não estava a registrar filho próprio, portanto, incompatível com a noção de erro’. Para o STJ, quem adota à brasileira tem pleno conhecimento das circunstâncias que gravitam em torno de seu gesto. Nestas circunstâncias, nem mesmo o pai, por arrependimento posterior, pode se valer de eventual ação anulatória postulando desconstituir o registro civil.”


Todavia, por ser um direito de personalidade saber a origem da pessoa, indisponível e imprescritível, o próprio STJ firmou a liberdade da pessoa em descobrir qual sua origem e a filiação:


“A ‘adoção à brasileira’, inserida no contexto de filiação socioafetiva, caracteriza-se pelo reconhecimento voluntário da maternidade/paternidade, na qual, fugindo das exigências legais pertinentes ao procedimento de adoção, o casal (ou apenas um dos cônjuges/companheiros) simplesmente registra a criança como sua filha, sem as cautelas judiciais impostas pelo Estado, necessárias à proteção especial que deve recair sobre os interesses do menor. O reconhecimento do estado de filiação constitui direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado sem qualquer restrição, em face dos pais ou seus herdeiros. O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, estabelecido no art. 1º, inc. III, da CF/88, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, traz em seu bojo o direito à identidade biológica e pessoal. Caracteriza violação ao princípio da dignidade da pessoa humana cercear o direito de conhecimento da origem genética, respeitando-se, por conseguinte, a necessidade psicológica de se conhecer a verdade biológica. A investigante não pode ser penalizada pela conduta irrefletida dos pais biológicos, tampouco pela omissão dos pais registrais, apenas sanada, na hipótese, quando aquela já contava com 50 anos de idade. Não se pode, portanto, corroborar a ilicitude perpetrada, tanto pelos pais que registraram a investigante, como pelos pais que a conceberam e não quiseram ou não puderam dar-lhe o alento e o amparo decorrentes dos laços de sangue conjugados aos de afeto. Dessa forma, conquanto tenha a investigante sido acolhida em lar ‘adotivo’ e usufruído de uma relação socioafetiva, nada lhe retira o direito, em havendo sua insurgência ao tomar conhecimento de sua real história, de ter acesso à sua verdade biológica que lhe foi usurpada, desde o nascimento até a idade madura. Presente o dissenso, portanto, prevalecerá o direito ao reconhecimento do vínculo biológico. Nas questões em que presente a dissociação entre os vínculos familiares biológico e socioafetivo, nas quais seja o Poder Judiciário chamado a se posicionar, deve o julgador, ao decidir, atentar de forma acurada para as peculiaridades do processo, cujos desdobramentos devem pautar as decisões. Recurso especial provido.”


Orienta o STJ, também, que não se permite ao adotante a impugnação ou a busca da nulidade depois de já constituído o vínculo socioafetivo:


“Em se tratando de adoção à brasileira, a melhor solução consiste em só permitir que o pai-adotante busque a nulidade do registro de nascimento, quando ainda não tiver sido constituído o vínculo de socioafetividade com o adotado.”91 São apresentadas as razões no voto do Relator: “Com essas ponderações, em se tratando de adoção à brasileira, a melhor solução consiste em só permitir que o pai-adotante busque a nulidade do registro de nascimento, quando ainda não tiver sido constituído o vínculo de socioafetividade com o adotado. Após formado o liame socioafetivo, não poderá o pai-adotante desconstruir a posse do estado de filho que já foi confirmada pelo véu da paternidade socioafetiva. Ressalte-se, por oportuno, que tal entendimento, todavia, é válido apenas na hipótese de o pai-adotante pretender a nulidade do registro. Não se estende, pois, ao filho adotado, a que, segundo entendimento deste Superior Tribunal de Justiça, assiste o direito de, a qualquer tempo, vindicar judicialmente a nulidade do registro em vista à obtenção do estabelecimento da verdade real, ou seja, da paternidade biológica (...). Por essa razão, como, na espécie, já houve a formação da paternidade socioafetiva, o entendimento acima conduz a que o registro de nascimento, embora inquinado pela adoção à brasileira, não é mais passível de anulação por ação do pai adotante (ou, in casu, viúva deste). Por fim, ressalve-se que a legitimidade ad causam da viúva do adotante para iniciar uma ação anulatória de registro de nascimento não é objeto do presente recurso especial. Por isso, a questão está sendo apreciada em seu mérito, sem abordar a eventual natureza personalíssima da presente ação. Assim, nega-se provimento ao recurso especial.”


A matéria é realmente controvertida, dominando ultimamente a tendência de se admitir a investigação de paternidade se intentada a ação pelo filho biológico, mas unicamente para conhecer a verdade biológica, sem desconstituir a filiação socioafetiva, como se pode ver do seguinte aresto:


“É consectário do princípio da dignidade humana o reconhecimento da ancestralidade biológica como direito da personalidade, podendo a ação de investigação de paternidade e de nulidade de registro ser julgada procedente mesmo que tenha sido construída uma relação socioafetiva entre o filho e o pai registral.”


Essa abertura não vai ao ponto de desconstituir a filiação socioafetiva, caso constituída. Isto porque, numa interpretação atual e axiológica do art. 227 e de seu § 6º da CF, há igualdade absoluta dos filhos, não importando a origem ou o nascimento.


Sobre a ação para meros efeitos de descobrir a verdade biológica, decidiu o TJ do RGS:


“Apelação cível. Investigação de paternidade. Paternidade socioafetiva com o pai registral reconhecida. Pretensão que visa exclusivamente aos efeitos patrimoniais decorrentes da filiação biológica. Caso concreto em que reconhecida a vinculação socioafetiva entre o demandante e seu pai registral, que perdurou por anos, exercendo, o autor, os direitos decorrentes dessa filiação, com o recebimento da herança deixada pelo de cujus. Pertinente, apenas, o reconhecimento da origem genética, que restou irrefutável diante da conclusão da prova técnica – exame de DNA, sem reconhecer os direitos patrimoniais e, tampouco, alterar o registro civil do demandante, sob pena de se desfigurar os princípios basilares do Direito de Família. Sentença confirmada. Apelo desprovido.”


Rizzardo, Arnaldo. Direito de Família (p. 548-541). Forense. Edição do Kindle.


A solução no seu caso concreto pode ser diferente. Contrate uma consulta com o Dr. Paulo Ladeira, advogado especialista em direito da família com atuação em São Paulo e São José dos Campos, para esclarecer detalhes ou divergências nos entendimentos dos magistrados.

"Tese que tem empolgado uma geração de inovadores do direito de família, está na pluri ou multiparentalidade, ou dupla parentalidade, dando realce ao filho ter mais de um pai ou de uma mãe.


Acontece essa viabilidade quando uma criança, embora com registro do pai biológico, desde a mais tenra idade está na guarda da mãe, a qual casa ou se une a outro homem. Este passa a criar o filho ou a filha da mulher ou companheira, dando-lhe um tratamento próprio de pai, isto é, com amor, carinho, acompanhamento diuturno, e assim seguindo ao longo dos anos, de modo a se criar uma relação socioafetiva de pai e filho. É o que se denomina de paternidade socioafetiva. A situação pode se inverter, em relação à mulher, dando-se duas mães à criança.

Nessas situações, não exsurgem maiores dificuldades quando desaparece o pai biológico, não mais procurando o filho. Todavia, existem casos em que se mantém o afeto entre o pai biológico e o filho, mas também se criando um vínculo de afetividade muito forte com o padrasto. Não é inviável que tal realidade aconteça em relação à mãe biológica, quando o filho é entregue à guarda do pai, que se une a outra mulher, seja através do casamento ou da união estável.


Em um ou outro caso, perdurando a afetividade, aparecem decisões que permitem a dupla paternidade ou maternidade. Retifica-se o registro original para incluir o nome de um segundo pai ou uma segunda mãe.


Exemplo de decisão é a seguinte:


“Maternidade socioafetiva. Preservação da Maternidade Biológica. Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família – Enteado criado como filho desde dois anos de idade - Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes – A formação da família moderna não consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade - Recurso provido”.


Essa alteração no registro civil traz sérios efeitos. Primeiramente, há um rompimento da ordem natural, com a criação de um modelo de filiação que desconstitui a paternidade ou maternidade natural. No âmbito pessoal do filho, traz uma indefinição de sua origem e insegurança na própria hierarquia dos progenitores naturais e os instituídos, a par de outros desacertos da personalidade. É possível o surgimento de conflitos internos, e, inclusive, de concorrências na disputa das preferências. Havendo dois pais, ou duas mães, um ou outro poderá agradar mais ao filho, satisfazer seus caprichos exageradamente, de modo a atrair a preferência por sua pessoa. Igualmente, quanto ao filho se possibilita um sentimento de insegurança ou instabilidade, em relação a quem agradar mais ou a quem obedecer. No afã de avançar e impressionar nas inovações, cometem-se atentados e violências às pessoas em formação.


Não se tira de cogitação as diferenças de sistemas de educação, dada a procedência diversa de pensamento, de convicções, de formação e de origem.


Quanto às obrigações de alimentos, na eventualidade de separação do pai afetivo da mãe biológica, ou vice-versa, mister redefinir os encargos, inclusive impondo o dever ao progenitor biológico, se antes não prestava assistência.


No registro civil, em vista do art. 54, itens 7º e 8º, da Lei 6.015/73 – Lei de Registros Públicos –, no registro deverão constar os nomes e prenomes dos pais e dos avós maternos e paternos. Assim, no registro de nascimento constará como pais os nomes dos pais biológicos, do pai ou mãe socioafetivo(a), bem como constarão como avós todos os ascendentes destes. Poderá o filho usar o nome de todos os pais.


No campo sucessório, obviamente o filho herdará os bens dos dois pais ou das duas mães.


O Supremo Tribunal Federal, em decisão festejada por aqueles que, ávidos de novidades, não encaram as consequências dos desvios da natureza do ser humano, à luz de mal interpretados princípios constitucionais, como o art. 226, §§ 3º, 4º, 6º e 7º, e do direito comparado, admitiu a dupla paternidade (dual paternity) ou maternidade.


Veja-se parte da ementa que tratou do assunto, entornando princípios que acompanham desde as origens o ser humano, e que revela o afã do típico evolucionismo pragmático do direito, mas sem impacto metafísico, em decisão com repercussão geral:


“... Multiplicidade de vínculos parentais. Reconhecimento concomitante. Possibilidade. Pluriparentalidade. Princípio da paternidade responsável (art. 226, § 7º, CRFB). Recurso a que se nega provimento. Fixação de tese para aplicação a casos semelhantes...”.


É longo e repleto de criação cultural o voto do relator, Min. Luis Fux, transcrevendo-se as seguintes passagens:


“Estabelecida a possibilidade de surgimento da filiação por origens distintas, é de rigor estabelecer a solução jurídica para os casos de concurso entre mais de uma delas. O sobreprincípio da dignidade humana, na sua dimensão de tutela da felicidade e realização pessoal dos indivíduos a partir de suas próprias configurações existenciais, impõe o reconhecimento, pelo ordenamento jurídico, de modelos familiares diversos da concepção tradicional. O espectro legal deve acolher, nesse prisma, tanto vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto aqueles originados da ascendência biológica, por imposição do princípio da paternidade responsável, enunciado expressamente no art. 226, § 7º, da Constituição. Não cabe à lei agir como o Rei Salomão, na conhecida história em que propôs dividir a criança ao meio pela impossibilidade de reconhecer a parentalidade entre ela e duas pessoas ao mesmo tempo. Da mesma forma, nos tempos atuais, descabe pretender decidir entre a filiação afetiva e a biológica quando o melhor interesse do descendente é o reconhecimento jurídico de ambos os vínculos. Do contrário, estar-se-ia transformando o ser humano em mero instrumento de aplicação dos esquadros determinados pelos legisladores. É o direito que deve servir à pessoa, não o contrário. O conceito de pluriparentalidade não é novidade no Direito Comparado. Nos Estados Unidos, onde os Estados têm competência legislativa em matéria de Direito de Família, a Suprema Corte de Louisiana ostenta jurisprudência consolidada quanto ao reconhecimento da ‘dupla paternidade’ (dual paternity). No caso Smith v. Cole (553 So.2d 847, 848), de 1989, o Tribunal aplicou o conceito para estabelecer que a criança nascida durante o casamento de sua mãe com um homem diverso do seu pai biológico pode ter a paternidade reconhecida com relação aos dois, contornando o rigorismo do art. 184 do Código Civil daquele Estado, que consagra a regra ‘pater ist est quem nuptiae demonstrant’. Nas palavras da Corte, a ‘aceitação, pelo pai presumido, intencionalmente ou não, das responsabilidades paternais, não garante um benefício para o pai biológico. (...) O pai biológico não escapa de suas obrigações de manutenção do filho meramente pelo fato de que outros podem compartilhar com ele da responsabilidade (The presumed father’s acceptance of paternal responsibilities, either by intent or default, does not ensure to the benefit of the biological father. (...) The biological father does not escape his support obligations merely because others may share with him the responsibility’). Em idêntico sentido, o mesmo Tribunal assentou, no caso T.D., wife of M.M.M. v. M.M.M., de 1999 (730 So. 2d 873), o direito do pai biológico à declaração do vínculo de filiação em relação ao seu filho, ainda que resulte em uma dupla paternidade. Ressalvou-se, contudo, que o genitor biológico perde o direito à declaração da paternidade, mantendo as obrigações de sustento, quando não atender ao melhor interesse da criança, notadamente nos casos de demora desarrazoada em buscar o reconhecimento do status de pai (‘a biological father who cannot meet the best-interest-of-the-child standard retains his obligation of support but cannot claim the privilege of parental rights’).

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Na doutrina brasileira, encontra-se a valiosa conclusão de Maria Berenice Dias, in verbis: ‘não mais se pode dizer que alguém só pode ter um pai e uma mãe. Agora é possível que pessoas tenham vários pais. Identificada a pluriparentalidade, é necessário reconhecer a existência de múltiplos vínculos de filiação. Todos os pais devem assumir os encargos decorrentes do poder familiar, sendo que o filho desfruta de direitos com relação a todos. Não só no âmbito do direito das famílias, mas também em sede sucessória. (...) Tanto é este o caminho que já há a possibilidade da inclusão do sobrenome do padrasto no registro do enteado’ (Manual de Direito das Famílias. 6ª. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 370). Tem-se, com isso, a solução necessária ante os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da paternidade responsável (art. 226, § 7º)”.


Deu-se a criação do Tema 622, que serve de parâmetro para as decisões de casos semelhantes:


“A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.


Sérios os efeitos que demandam do enunciado, inclusive de caráter sucessório, podendo o filho herdar do pai biológico e do pai afetivo, ou seja, de todos os progenitores reconhecidos e constantes do registro civil, ou que vierem a ser admitidos em processos judiciais."


Fonte: Rizzardo, Arnaldo. Direito de Família (p. 385-388). Forense. Edição do Kindle.

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